terça-feira, 15 de agosto de 2017

Antropologia Clássica e o surgimento do método Etnográfico



É com o surgimento da etnografia como método de pesquisa na Antropologia, no início do século XX, que a pesquisa antropológica se enriquece e, ao mesmo tempo, demonstra diferenciação das outras áreas de estudos, no que comumente se definiu como ciências humanas.
            A partir do momento que surge a necessidade de se abandonar a repartição de tarefas, típica da Antropologia Clássica do século XIX, entre o observador (viajante, missionário, administrador), aquele que costumeiramente caberia a tarefa de colher informações sobre outros povos, costumes e culturas, e o pesquisador erudito, este dedicado a analisar e interpretar tais informações, é que na Antropologia começa a surgir o enfoque na relevância do pesquisador (antropólogo) em aprender a viver com a comunidade estudada, aprender a viver como as pessoas da própria comunidade, aprendendo a língua, a pensar, sentir e se relacionar da maneira da comunidade. 
             Na tentativa de reconstrução da história dos povos humanos, a Antropologia do século XIX partia de uma perspectiva evolucionista demonstrando que no percurso de desenvolvimento das culturas alguns povos teriam alcançado o estágio de “povos civilizados” e outros teriam estacionados em estágios inferiores de “selvageria” ou “barbárie”. O papel do antropólogo se resumia a análise dos relatos de viajantes, expedições científicas, missionários ou informes das oficinas coloniais, materiais volumosos que ocupavam o pesquisador em seu gabinete, resumindo suas reflexões a deduções e especulações etnocêntricas.
            Mas é a partir do século XX que o trabalho de campo passa a ser um fator decisivo nas pesquisas, garantindo a justificação das análises, o caráter comprobatório dos estudos e dos dados observados, pois o pesquisador se torna agora testemunha ocular cabal e factual do que está sendo interpretado, buscando afastar o máximo possível os preconceitos de uma cultura tida como mais evoluída e, por isso mais civilizada, em relação a uma outra inferior, barbara, exótica e primitiva. Surge então a necessidade de se rever o método de pesquisa na Antropologia, Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942) são exemplos dessa nova forma de interpretação das culturas que marca o surgimento da Etnografia.
            Franz Boas  jovem cientista alemão, começa suas pesquisas no Ártico canadense com seus estudos sobre a cultura, buscando analisar os Esquimós daquela região pouco estudada, na tentativa de colher dados antropológicos, (destaque para a Antropologia que ainda estava se constituindo como ciência), como forma de entender a dinâmica de formação das culturas, interpretando e fazendo um paralelo com nosso estilo de vida, Boas desperta para a reflexão crítica sobre interpretações deterministas e estabelece como forma de análise das culturas o que ficou conhecido como enfoque microssociológico, rompendo com a perspectiva evolucionista. Para Boas a complexidade dos fenômenos etnológicos, aparentemente simples, não podiam ser explicados por uma só causa, esses decorrem de vários fatores, para interpretá-los seria necessário um estudo minucioso de cada cultura específica.

Ainda estamos buscando as leis que governam o desenvolvimento da cultura humana, do pensamento humano; mas reconhecemos o fato de que, antes de buscarmos o que é comum a toda cultura, devemos analisar cada cultura com métodos cuidados e exatos, como o geólogo analisa a sucessão e a ordem dos depósitos, como o biólogo examina as formas de matéria viva (BOAS, 2004, p.140).

Portanto, já é possível perceber com Boas a necessidade para o Antropólogo de se estudar através do contato de campo as microssociedades, como condição para sua compreensão cientifica. Da ilha Vancouver e passando pela atual Colúmbia Britânica, seus estudos e trabalho de campo para a Associação Britânica sobre os índios do noroeste da América, marcam as contribuições do seu estilo de interpretação antropológica, que não esteve apenas resumido a pesquisa cientifica, mas também esteve associado a necessidade do antropólogo se engajar politicamente e participar ativamente da vida pública na qual estiver inserido. Foi o que o mesmo fez, quando encarou problemas étnicos e raciais nos Estados Unidos da América, e quando participou de uma assembleia de profissionais negros, além de ter escrito sobre outros temas polêmicos no EUA.
Mas foi com Bronislaw Malinowski que a importância da pesquisa de campo foi radicalizada, procurando compreender por dentro da comunidade estudada o que sentem homens e mulheres pertencentes a uma cultura não-ocidental, este jovem polonês inovou o método de pesquisa na Antropologia. Foi nas ilhas Trobriand, onde viveu por mais de três anos, que surgiu uma de suas obras fundamentais Argonautas do Pacífico Ocidental (1922), na qual o autor discorre sobre o método e o objetivo de sua pesquisa, formulando na sua introdução, pela primeira vez, o significado do método etnográfico. Os argonautas são uma complexa narrativa, simultaneamente sobre a vida trobiandesa e sobre o trabalho de campo etnográfico. Ela é arquetípica do conjunto de etnografias que com sucesso estabeleceu a validade científica da observação participante (CLIFFORD, 1998, p.27).
Malinowski entendia que no estudo de uma sociedade, o antropólogo deve tomá-la em sua totalidade, buscando ao máximo compreender os modos de vida e de pensar da sociedade estudada. Funda com isso uma espécie de antropologia da alteridade, dedicando-se ao estudo particular das características de cada cultura, negando assim, a interpretação evolucionista. Seu contato com os trobiandeses, o fez refletir sobre o método que vinha sendo usado pela Antropologia, ele propunha, que o antropólogo deveria conviver um longo período entre os “primitivos”, aprendendo a língua e os costumes como meio para não ser percebido. Só assim, o pesquisador estaria apto a captar, o que ele chamou de “ponto de vista do nativo”.
Assim, ao estudar os trobiandeses, Malinowski demostrou que seus costumes, por mais que sejam muito diferentes dos nossos, apresentavam lógica e coerência, desmistificando a visão etnocêntrica de que esses povos, e outros não-ocidentais, eram ignorantes e com tradições estúpidas, por terem parado no tempo. Foi assim, quando descobriu a rigorosa e complexa organização econômica do Kula, uma forma de troca de caráter intertribal praticadas por comunidades localizadas num extenso conjunto de ilhas do norte ao leste e extremo oriental da Nova Guiné.
O método etnográfico, proposto por Malinowski, se apresenta como uma ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário do que em outras ciências (MALINOWSKI, 1984, p.18). A observação direta das declarações e interpretações nativas, atreladas a intuição psicológica do autor, captaria as impressões mais próximas da realidade do nativo, possibilitando ao antropólogo o possível entendimento da sociedade estudada. Assim, o caráter científico do método etnográfico levaria em conta não apenas a observação dos fatos in loco, mas também na bagagem teórica que o antropólogo levaria consigo para o campo. O que Malinowski definiu como “esquema mental”, necessário para estabelecer os roteiros e os caminhos possíveis na pesquisa.

O tratamento científico difere do senso comum, primeiro, pelo fato de que o cientista se empenha em continuar sua pesquisa sistemática e metodicamente, até que ela esteja completa e contenha, assim, o maior número possível de detalhes; segundo, porque, dispondo de um cabedal científico, o investigador tem a capacidade de conduzir a pesquisa através de linhas de efetiva relevância e a objetivos realmente importantes. (MALINOWSKI, 1984, p.24).

            A etnografia aparece como um método de observação, mas não uma observação passiva, e sim uma observação participante, das práticas, dos comportamentos, uma vivência prolongada com os nativos, estando presente na comunidade estudada, prestando atenção ao que fazem e sobre o que dizem em relação ao que estão fazendo, tomando nota de campo e coletando dados, tudo isso torna-se relevante no método inovador proposto por Malinowski em sua Antropologia Social. Esta consiste num estudo de um objeto por vivência direta da realidade onde este se insere.
            Com este novo método definido, a Antropologia passa agora a entender as culturas como um todo, mudando o seu objeto, que antes eram tribos, índios, esquimós, primitivos etc. passando a se interessar pelas sociedades humanas, sejam elas quais for. É nossa tarefa estudar o homem e devemos, portanto, estudar tudo aquilo que mais intimamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce sobre ele (MALINOWSKI, 1984, p.34).
            A recusa a perspectiva evolucionista, passando por essa nova fase da pesquisa de campo, possibilitou o desenvolvimento na Antropologia em levar em consideração a diversidade cultural. Essa diversidade não estava agora associada a um processo evolutivo único, nos quais alguns povos diferiam por suas formas culturais tomadas como simples, atrasadas, primitivas em relação a outras mais desenvolvidas, civilizadas.
             A etnografia tomada como texto, ou relato escrito resultante da pesquisa de campo sobre uma cultura, passa a ser um método de análise inserido na Antropologia que passa agora, depois das contribuições de Malinowski, a ter autoridade entre os antropólogos. O método etnográfico se apresenta como um suposto “mergulho” na vida cotidiana do “Outro”, que o antropólogo pretende estudar. E esse mergulho servirá como modelo para outros teóricos e estudiosos da cultura que adotarem o método etnográfico em suas pesquisas.