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quarta-feira, 29 de novembro de 2017
terça-feira, 28 de novembro de 2017
terça-feira, 15 de agosto de 2017
Antropologia Clássica e o surgimento do método Etnográfico
É
com o surgimento da etnografia como método de pesquisa na Antropologia, no início
do século XX, que a pesquisa antropológica se enriquece e, ao mesmo tempo,
demonstra diferenciação das outras áreas de estudos, no que comumente se
definiu como ciências humanas.
A partir do momento que surge a
necessidade de se abandonar a repartição de tarefas, típica da Antropologia
Clássica do século XIX, entre o observador (viajante, missionário,
administrador), aquele que costumeiramente caberia a tarefa de colher
informações sobre outros povos, costumes e culturas, e o pesquisador erudito,
este dedicado a analisar e interpretar tais informações, é que na Antropologia
começa a surgir o enfoque na relevância do pesquisador (antropólogo) em
aprender a viver com a comunidade estudada, aprender a viver como as pessoas da
própria comunidade, aprendendo a língua, a pensar, sentir e se relacionar da
maneira da comunidade.
Na tentativa de reconstrução da história dos
povos humanos, a Antropologia do século XIX partia de uma perspectiva
evolucionista demonstrando que no percurso de desenvolvimento das culturas
alguns povos teriam alcançado o estágio de “povos civilizados” e outros teriam
estacionados em estágios inferiores de “selvageria” ou “barbárie”. O papel do
antropólogo se resumia a análise dos relatos de viajantes, expedições
científicas, missionários ou informes das oficinas coloniais, materiais
volumosos que ocupavam o pesquisador em seu gabinete, resumindo suas reflexões
a deduções e especulações etnocêntricas.
Mas é a partir do século XX que o trabalho de campo passa a ser um fator
decisivo nas pesquisas, garantindo a justificação das análises, o caráter
comprobatório dos estudos e dos dados observados, pois o pesquisador se torna
agora testemunha ocular cabal e factual do que está sendo interpretado,
buscando afastar o máximo possível os preconceitos de uma cultura tida como
mais evoluída e, por isso mais civilizada, em relação a uma outra inferior,
barbara, exótica e primitiva. Surge então a necessidade de se rever o método de
pesquisa na Antropologia, Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski
(1884-1942) são exemplos dessa nova forma de interpretação das culturas que
marca o surgimento da Etnografia.
Franz Boas jovem cientista alemão, começa suas pesquisas
no Ártico canadense com seus estudos sobre a cultura, buscando analisar os Esquimós
daquela região pouco estudada, na tentativa de colher dados antropológicos,
(destaque para a Antropologia que ainda estava se constituindo como ciência),
como forma de entender a dinâmica de formação das culturas, interpretando e
fazendo um paralelo com nosso estilo de vida, Boas desperta para a reflexão
crítica sobre interpretações deterministas e estabelece como forma de análise
das culturas o que ficou conhecido como enfoque microssociológico, rompendo com
a perspectiva evolucionista. Para Boas a complexidade dos fenômenos
etnológicos, aparentemente simples, não podiam ser explicados por uma só causa,
esses decorrem de vários fatores, para interpretá-los seria necessário um
estudo minucioso de cada cultura específica.
Ainda
estamos buscando as leis que governam o desenvolvimento da cultura humana, do
pensamento humano; mas reconhecemos o fato de que, antes de buscarmos o que é
comum a toda cultura, devemos analisar cada cultura com métodos cuidados e
exatos, como o geólogo analisa a sucessão e a ordem dos depósitos, como o
biólogo examina as formas de matéria viva (BOAS, 2004, p.140).
Portanto,
já é possível perceber com Boas a necessidade para o Antropólogo de se estudar
através do contato de campo as microssociedades, como condição para sua compreensão
cientifica. Da ilha Vancouver e passando pela atual Colúmbia Britânica, seus
estudos e trabalho de campo para a Associação Britânica sobre os índios do noroeste
da América, marcam as contribuições do seu estilo de interpretação
antropológica, que não esteve apenas resumido a pesquisa cientifica, mas também
esteve associado a necessidade do antropólogo se engajar politicamente e
participar ativamente da vida pública na qual estiver inserido. Foi o que o
mesmo fez, quando encarou problemas étnicos e raciais nos Estados Unidos da
América, e quando participou de uma assembleia de profissionais negros, além de
ter escrito sobre outros temas polêmicos no EUA.
Mas
foi com Bronislaw Malinowski que a importância da pesquisa de campo foi
radicalizada, procurando compreender por dentro da comunidade estudada o que sentem
homens e mulheres pertencentes a uma cultura não-ocidental, este jovem polonês
inovou o método de pesquisa na Antropologia. Foi nas ilhas Trobriand, onde
viveu por mais de três anos, que surgiu uma de suas obras fundamentais Argonautas do Pacífico Ocidental (1922),
na qual o autor discorre sobre o método e o objetivo de sua pesquisa,
formulando na sua introdução, pela primeira vez, o significado do método
etnográfico. Os argonautas são uma complexa narrativa, simultaneamente sobre a
vida trobiandesa e sobre o trabalho de campo etnográfico. Ela é arquetípica do
conjunto de etnografias que com sucesso estabeleceu a validade científica da
observação participante (CLIFFORD, 1998, p.27).
Malinowski
entendia que no estudo de uma sociedade, o antropólogo deve tomá-la em sua
totalidade, buscando ao máximo compreender os modos de vida e de pensar da
sociedade estudada. Funda com isso uma espécie de antropologia da alteridade,
dedicando-se ao estudo particular das características de cada cultura, negando
assim, a interpretação evolucionista. Seu contato com os trobiandeses, o fez
refletir sobre o método que vinha sendo usado pela Antropologia, ele propunha,
que o antropólogo deveria conviver um longo período entre os “primitivos”,
aprendendo a língua e os costumes como meio para não ser percebido. Só assim, o
pesquisador estaria apto a captar, o que ele chamou de “ponto de vista do
nativo”.
Assim,
ao estudar os trobiandeses, Malinowski demostrou que seus costumes, por mais
que sejam muito diferentes dos nossos, apresentavam lógica e coerência,
desmistificando a visão etnocêntrica de que esses povos, e outros não-ocidentais,
eram ignorantes e com tradições estúpidas, por terem parado no tempo. Foi
assim, quando descobriu a rigorosa e complexa organização econômica do Kula, uma forma de troca de caráter intertribal
praticadas por comunidades localizadas num extenso conjunto de ilhas do norte
ao leste e extremo oriental da Nova Guiné.
O método etnográfico,
proposto por Malinowski, se apresenta como uma ciência em que o relato honesto
de todos os dados é talvez ainda mais necessário do que em outras ciências (MALINOWSKI,
1984, p.18). A observação direta das declarações e interpretações nativas,
atreladas a intuição psicológica do autor, captaria as impressões mais próximas
da realidade do nativo, possibilitando ao antropólogo o possível entendimento
da sociedade estudada. Assim, o caráter científico do método etnográfico
levaria em conta não apenas a observação dos fatos in loco, mas também na
bagagem teórica que o antropólogo levaria consigo para o campo. O que
Malinowski definiu como “esquema mental”, necessário para estabelecer os
roteiros e os caminhos possíveis na pesquisa.
O tratamento científico
difere do senso comum, primeiro, pelo fato de que o cientista se empenha em
continuar sua pesquisa sistemática e metodicamente, até que ela esteja completa
e contenha, assim, o maior número possível de detalhes; segundo, porque, dispondo
de um cabedal científico, o investigador tem a capacidade de conduzir a
pesquisa através de linhas de efetiva relevância e a objetivos realmente
importantes. (MALINOWSKI, 1984, p.24).
A etnografia aparece como um método de observação, mas
não uma observação passiva, e sim uma observação
participante, das práticas, dos comportamentos, uma vivência prolongada com
os nativos, estando presente na comunidade estudada, prestando atenção ao que
fazem e sobre o que dizem em relação ao que estão fazendo, tomando nota de
campo e coletando dados, tudo isso torna-se relevante no método inovador
proposto por Malinowski em sua Antropologia Social. Esta consiste num estudo de um objeto por vivência direta da
realidade onde este se insere.
Com
este novo método definido, a Antropologia passa agora a entender as culturas
como um todo, mudando o seu objeto, que antes eram tribos, índios, esquimós,
primitivos etc. passando a se interessar pelas sociedades humanas, sejam elas quais
for. É nossa tarefa estudar o homem e devemos, portanto, estudar tudo aquilo
que mais intimamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce
sobre ele (MALINOWSKI, 1984, p.34).
A recusa a perspectiva evolucionista, passando por essa
nova fase da pesquisa de campo, possibilitou o desenvolvimento na Antropologia em
levar em consideração a diversidade cultural. Essa diversidade não estava agora
associada a um processo evolutivo único, nos quais alguns povos diferiam por
suas formas culturais tomadas como simples, atrasadas, primitivas em relação a
outras mais desenvolvidas, civilizadas.
A etnografia tomada como texto, ou relato escrito resultante da pesquisa de campo sobre uma cultura, passa a ser um método de análise inserido na Antropologia que passa agora, depois das contribuições de Malinowski, a ter autoridade entre os antropólogos. O método etnográfico se apresenta como um suposto “mergulho” na vida cotidiana do “Outro”, que o antropólogo pretende estudar. E esse mergulho servirá como modelo para outros teóricos e estudiosos da cultura que adotarem o método etnográfico em suas pesquisas.
A etnografia tomada como texto, ou relato escrito resultante da pesquisa de campo sobre uma cultura, passa a ser um método de análise inserido na Antropologia que passa agora, depois das contribuições de Malinowski, a ter autoridade entre os antropólogos. O método etnográfico se apresenta como um suposto “mergulho” na vida cotidiana do “Outro”, que o antropólogo pretende estudar. E esse mergulho servirá como modelo para outros teóricos e estudiosos da cultura que adotarem o método etnográfico em suas pesquisas.
quarta-feira, 14 de junho de 2017
O dualismo da Natureza humana e as suas condições sociais.
RESUMO:
Nesta obra,
Émile Durkheim propõe uma investigação acerca da origem da dualidade da
natureza humana expressa na imagem do homem como um ser dividido em corpo e
alma, uma divisão constitucional que isola e opõe dois mundos distintos. De um
lado estão os apetites sensíveis, egoístas que se referem a nossa
individualidade; de outro as atividades do espírito, como o pensamento
conceitual e a ação moral, necessariamente universalizável, com fins impessoais.
A partir desse dualismo, Durkheim apresenta a chave para o entendimento do homo duplex (expressão do próprio Durkheim), a constatação de um duplo centro de gravidade da vida interior. Esse dualismo da natureza humana em corpo e alma, como realidades opostas presentes num único ser, também se constata na vida psíquica. A nossa vida interior apresenta estados de consciência opostos, não apenas por suas origens, mas também por suas propriedades. Há em todos nós dois seres que se opõem e que nos constituem.
A partir desse dualismo, Durkheim apresenta a chave para o entendimento do homo duplex (expressão do próprio Durkheim), a constatação de um duplo centro de gravidade da vida interior. Esse dualismo da natureza humana em corpo e alma, como realidades opostas presentes num único ser, também se constata na vida psíquica. A nossa vida interior apresenta estados de consciência opostos, não apenas por suas origens, mas também por suas propriedades. Há em todos nós dois seres que se opõem e que nos constituem.
A
individualidade é representada em nossa vida psíquica através de nossas
sensações, nossos apetites, nosso egoísmo, ela só depende de si própria para se
satisfazer. Mas há também em nós algo que ultrapassa nossa individualidade, que
faz com que cada um de nós se afaste dos instintos e das inclinações do corpo,
em nome de algo impessoal, que “exprime outra coisa que não nós mesmos.”
(Durkheim, 292, 1970).
Para
responder essa questão, Durkheim primeiramente analisa as explicações
existentes acerca desse dualismo, (o monismo empírico e o idealista)
demonstrando que elas apenas tratam o problema de maneira aparente. Enquanto o
empirismo coloca a experiência sensível como fonte de todo o conhecimento, como
origem dos conteúdos da atividade intelectual, o idealismo despreza a realidade
sensível em nome de uma suposta superioridade das idéias, que são perfeitas e
infinitas. Essas duas correntes filosóficas não respondem a questão sobre a
coexistência de realidades opostas em um único ser. Assim como também a teoria
kantiana, que para Durkheim, também não resolve o problema do dualismo da
existência, pois propõe o dilema em outros termos, mas não o encerra. Para Kant
esse dualismo está fundado na existência simultânea de duas faculdades
distintas, sensibilidade e razão, que dão conta respectivamente do particular e
do universal.
Voltando
ao problema em questão, como explicar a origem no mesmo ser de atitudes
contrárias, o método sociológico, apresentado por Durkheim, se apresenta com
maior razoabilidade. Para Durkheim, essa constituição psíquica, assim como
nosso organismo, é produto de uma gênese que seria o social. Assim, o espírito
humano é comparável aos outros fenômenos observáveis e pode ser analisado como
uma coisa, objetividade. Esse dualismo, segundo o sociólogo alemão, seria uma
espécie de particularidade da divisão do mundo das coisas em sagradas e
profanas, que podem ser verificadas na base de todas as religiões e, deve se
explicar segundo os mesmos princípios.
Há
uma hierarquia entre as funções psíquicas que colocam a alma numa instância
superior ao corpo. As coisas sagradas possuem autoridade que se impõe sobre as
vontades individuais. Elas são ideais coletivos e são investidos, devido a sua
origem, de uma autoridade diante dos indivíduos que as pensam e que neles
acreditam, são representados sob a forma de forças morais que os dominam e que
os apóiam. Quando estes idéias impelem a vontade individual, o indivíduo se
sente conduzido, arrastado, dirigido por energias singulares que, não vem dele
próprio, mas que são impostas, posteriormente respeitadas, devido ao
reconhecimento e o conforto que elas traduzem. Esses mesmos ideais coletivos
interligam os homens, através dessa operação psíquica entre pluralidade de
consciências individuais numa consciência comum. Ideais coletivos ou
representações coletivas se constituem encarnando-se em objetos materiais,
coisas, seres de todas as espécies, que os traduzem exteriormente e os
simbolizam. É através desse processo que a comunhão entre as consciências se
dá.
Para Durkheim, esse despertar de forças morais, que são respeitas, temidas, procuradas como forças benéficas, são colocadas num plano diferente daquelas, que são vulgares e que interessam apenas a nossa individualidade física. São ideais produtos da vida coletiva e só existem nas consciências individuais, quando são organizadas de maneira duradoura.
Para Durkheim, esse despertar de forças morais, que são respeitas, temidas, procuradas como forças benéficas, são colocadas num plano diferente daquelas, que são vulgares e que interessam apenas a nossa individualidade física. São ideais produtos da vida coletiva e só existem nas consciências individuais, quando são organizadas de maneira duradoura.
A produção dos indivíduos socialmente condicionada, em Karl Marx.
Nascido
na Alemanha, na cidade de Treves, Karl Marx escreveu sobre filosofia, economia
e sociologia. Seu pensamento é um dos mais difíceis de compreender, explicar ou
sintetizar, por tamanha riqueza e desdobramentos que vão além do campo teórico
e científico. Com o objetivo de entender o sistema capitalista e modificá-lo,
Marx produziu muito, suas ideias se desdobraram em várias vertentes e foram
incorporadas por diferentes estudiosos. A recepção do seu pensamento no cenário
mundial, se deu tanto pelo caráter universal de seus princípios, o caráter
totalizante que imprimiu às suas ideias, como também, ao caráter político,
militante de suas ideias divulgadas e voltadas para a ação prática, ou ainda,
para a práxis revolucionária.
Marx foi sensível as dificuldades
enfrentadas pela Europa, numa época de pleno desenvolvimento capitalista,
apontou as contradições desse modo de organização social, que quanto mais
crescia, mais aprofundava seus conflitos e dissensões. As revoluções burguesas
eclodiam por todo o velho continente fruto de um processo histórico que cada
vez mais se constituía e condicionava as relações do mundo vivido. Destacando
as contradições básicas da sociedade capitalista e as possibilidades de
superação da mesma, em época de grande efervescência social, de lutas sociais
que eclodiam por toda a Europa, o pensamento marxista possibilitou o
desenvolvimento não apenas da ciência, mas também da política, da organização
dos grupos sociais a partir de uma suposta necessidade política, de uma
participação ativa na vida social.
Influenciado pela filosofia alemã,
destacando o pensamento de Georg W. Hegel e Ludwing Feuerbach, além do
pensamento político francês e inglês, de Rousseau, conde de Saint-Simon,
François-Charles Fourier e Robert Owen, o pensamento marxista também sofreu
influência dos economistas ingleses como Adam Smith e David Ricardo. Todos eles
necessários para compreensão da reflexão marxista da moderna sociedade
capitalista.
A problemática do trabalho já
aparece nas reflexões dos economistas ingleses como um elemento importante na
vida social, pois é ele quem gera riqueza para as sociedades. Mas, além de ser
capaz de criar valor, esse elemento o trabalho, comum a todas as formas sociais
da vida humana, torna-se decisivo para a compreensão crítica do capitalismo,
para o seu funcionamento, para o modo como condiciona a vida social. As
divisões, as especialidades que o trabalho vem apresentando na sociedade
capitalista, para Marx seria o produto de um modo de produção em desenvolvimento,
esse modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social,
política e intelectual (MARX, 1946, p.31).
Pensando
assim, o indivíduo aparece condicionado, sua atividade laboral pré
estabelecida, para fins privados e estranhos aos seus interesses próprios. O
trabalho não é somente um elemento natural, atividade vital, vida produtiva,
que constrói e transforma o mundo. Essa força vital, livre e consciente ocupa
um lugar de destaque na produção capitalista. Além de gerar valor para as
sociedades, no moderno capitalismo, o trabalho alienado afasta do homem sua
potencialidade vital, sua objetividade real como ente-espécie, seu objetivo
fundamental.
Quanto
mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o
indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um todo maior: de
início, e de maneira totalmente natural, na família e na família ampliada em
tribo [Stamm]; mais tarde, nas diversas formas de comunidade resultantes do
conflito e da fusão das tribos. Somente no século XVIII, com a “sociedade
burguesa”, as diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo como
simples meio para fins privados, como necessidade exterior. (MARX, 2011, p.
40.).
Esse
trabalho condicionado por um modo especifico de produção, o capitalista,
possibilita compreender as contradições do modo de vida mercantil. A forma como
os homens ocupam suas vidas cotidianamente seria o resultado de forças
antagônicas, de lutas de classes, afirmaria Marx. Assim, partindo da análise do
materialismo histórico, teoria abrangente e universal desenvolvida por Marx,
que buscava analisar toda e qualquer forma produtiva criada pelo homem, é
possível problematizar o modo de produção da sociedade burguesa e
consequentemente o trabalho. Os fatores fundamentais que organizam os homens
para a produção de bens são: as forças
produtivas e as relações de produção.
Esses dois fatores são apresentados por Marx já em suas obras da juventude
(1841-1844) da seguinte maneira:
(...)
na produção social da própria existência, os homens entram em relações
determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de
produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças
produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência. (MARX, 1946, p.31).
As forças produtivas constituem as
condições materiais de toda a produção. Seja qual for o processo de trabalho
determinados objetos são necessários, matérias-primas extraídas da natureza,
determinados instrumentos - conjunto de forças naturais transformadas e
adaptadas pelo homem - como ferramentas ou máquinas. As relações de produção
são as formas pelas quais os homens se organizam para produzir. Essas formas se
referem às diversas maneiras pelas quais são distribuídos os elementos necessários
no processo de trabalho, esses elementos são as matérias-primas, os
instrumentos, os trabalhadores e o produto final. Essas relações de produção
podem ser escravistas, cooperativistas, servis, ou capitalista. Diferentes
formas para o que Marx definiu como modo
de produção.
Para Marx (2011, p. 43), toda
produção é apropriação da natureza pelo indivíduo no interior de e mediada por
uma determinada forma de sociedade. E seja qual for a forma de produção, ela
forja suas próprias relações jurídicas, forma de governo etc. A divisão do
trabalho aparece nesse caso como que estabelecida pela produção, no capitalismo
moderno, no qual existem duas classes que se antagonizam, que constituem a
moderna sociedade, essa divisão se mostra como consequência dessa constituição
social. Essas duas grandes classes são: a burguesia e o proletariado.
A
sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não
aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas
classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que
existiram no passado. (...) a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se
por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez
mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a
burguesia e o proletariado. (MARX, 2007, p.41).
Portanto, a divisão do trabalho
aparece no pensamento marxista como produto do modo de produção capitalista,
que condiciona e estabelece o lugar dos indivíduos na sociedade. A ocupação dos
homens é forjada pela forma como eles produzem socialmente, forma determinada
pelo modelo capitalista de produção, que expropria a força de trabalho do
proletariado. A divisão do trabalho, e sua especificidade, acarretou um
distanciamento cada vez maior entre o trabalhador e o produto fruto da sua
força de trabalho. A mecanização dos meios de produção se transforma, desde o
princípio até o surgimento da indústria moderna, em processos racionalmente
operacionais, subdivididos e parciais. Gerando, com isso, um isolamento dos
indivíduos, tanto no tocante à produção como também na comunicabilidade entre
si.
Essa fragmentação abstrata, presente
nos processos de produção e, também, na divisão do trabalho, estende-se às
propriedades psicológicas do indivíduo, submetendo-o a uma passividade
contemplativa. Na sociedade burguesa, há a impossibilidade do ponto de vista
unitário sobre, não apenas, a atividade realizada e toda comunicação direta
entre os trabalhadores, mas também o distanciamento da possível compreensão,
por parte do trabalhador, da sua própria existência e do seu próprio desejo.
Dessa perspectiva, surge o trabalho alienado. Que separa o proletariado dos
meios de produção, do fruto da sua força de trabalho, que se tornaram
propriedade do empresário capitalista, da burguesia.
A concretização da divisão fabril do
trabalho, com a primeira Revolução Industrial, tornou a mercadoria uma
ocupação, uma atividade produtiva constante que não pode cessar, pois tem que
suprimir as necessidades aparentes e impostas pelo mercado à economia mundial.
O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. (MARX,
2011, p. 60).
A política como vocação, em Max Weber.
Na obra "A
Política como Vocação", Max Weber, procura investigar o conceito de política,
tentando afastar as acepções mais abrangentes que o próprio conceito abarca.
Para Weber, a política se apresenta como uma suposta direção do estado, ou
ainda, do agrupamento político hoje denominado “Estado”. Esse estado não se
define, sociologicamente, pelos seus fins, nem por supostas tarefas exclusivas,
mas por outro lado, pelo meio específico que lhe é peculiar, que seria o uso da
coação física.
Weber chega a
afirmar que todo estado se funda na força, ou melhor, que a violência é o
instrumento específico do estado. E que há entre o Estado e a violência uma
relação íntima, que pode ser observado, ao longo do tempo, nos mais diversos
agrupamentos políticos, a começar pela família. A noção moderna do estado como
comunidade humana que reivindica o monopólio do uso legítimo da violência
física, concentra a idéia weberiana do fundamento do estado como única fonte do
direito à violência e, por conseguinte a definição da política como “o conjunto
de esforços com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão do
poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado” (WEBER, Max,
p.67).
A noção de
Estado trás consigo a relação de dominação do homem sobre o homem, que
historicamente é possível de se observar em qualquer tipo de agrupamentos
políticos. Sendo assim, todo e qualquer homem que se entrega a política tem por
finalidade a aspiração ao poder, tanto para fins pessoais, egoístas ou ideais,
ou pelo desejo do poder pelo poder, gozando dos prestígios que este o confere.
A dominação legítima seria um elemento relevante, nas investigações de Weber,
para entender quais as razões que justificam essa dominação e ainda, quais as justificativas
externas que as sustentam.
Para Weber,
existem três razões internas que justificam a dominação, e que também servem de
fundamentos da legitimidade da dominação. Essas razões se traduzem como o poder
tradicional, o poder carismático e, por fim, o poder legalista, ou da
legalidade. O tradicionalista diz respeito a autoridade do “passado eterno”, ou
em outras palavras dos costumes santificados enraizados nos homens que os
respeitam. O poder carismático se configura numa espécie de autoridade que se
funda em dons pessoais e extraordinários de um indivíduo (carisma), devoção e
confiança estritamente pessoais depositadas em alguém. E por último o poder
legalista ou da legalidade, este fundado na crença da validade de um estatuto
legal e de uma competência positiva, fundada em regras racionalmente
estabelecidas, ou melhor, a autoridade fundada na obediência, que reconhece
obrigações estabelecidas conforme um estatuto.
Todas essas
formas de dominação são entendidas como uma dominação organizada, que lança mão
de meios para afirmar a sua autoridade. Os meios que dispõem os homens
políticos para dar continuidade à dominação são por um lado um estado-maior
administrativo e, por outro lado, os meios materiais de gestão. Esses elementos
fornecem a o entendimento acerca da natureza da autoridade e, por conseguinte a
legitimidade da dominação.
O estado-maior
representa externamente a organização de dominação política, que não se
sustenta apenas pela obediência ao detentor do poder em razão das três
concepções de legitimidade, mas também através de duas espécies de obediência
que se relacionam a interesses pessoais: retribuição material e prestígio
social. Tomados como exemplo: os vencimentos dos funcionários públicos, a
homenagem dos vassalos e da outra parte, a honra dos cavaleiros, os privilégios
das ordens e a dignidade do servidor. O medo de perder o conjunto dessas
vantagens é a razão decisiva da solidariedade que liga o estado-maior
administrativo aos detentores do poder.
Para garantir
a continuidade de uma dominação que se sustenta no uso da violência, ou da
força, se faz necessário certos bens materiais. Sendo assim, Weber classifica
as administrações em duas categorias. A primeira obedece ao seguinte princípio;
o estado-maior, os funcionários ou outros magistrados, os quais os detentores
do poder depende, são eles próprios, os proprietários dos instrumentos de
gestão, instrumentos que podem ser recursos financeiros, edifícios, material de
guerra, parque de veículos, cavalos etc. A segunda categoria obedece a um
princípio oposto; o estado-maior é “privado” dos meios de gestão, assim como
nos dias atuais, nos quais o empregado e o proletariado são “privados” dos
meios materiais de produção numa empresa capitalista.
Sobre a "Divisão do Trabalho Social" em Durkheim.
Émile Durkheim
em sua obra Da Divisão do Trabalho Social, propõe um análise acerca da
importância da divisão do trabalho para o desempenho da organização social.
Destacando a divisão do trabalho como um fenômeno social e distinguindo o seu
método de análise da sociedade dos métodos moralistas, que comumente atribuíam
às regras morais o fundamento da organização social, o sociólogo francês, ao
contrário, demonstra a objetividade da divisão do trabalho, sua realidade
social como “condição necessária do desenvolvimento material e intelectual das
sociedades” (Durkheim).
Ao destacar a
divisão do trabalho como realidade, parte para o entendimento da necessidade
social que ela corresponde. Qual a sua função ou, a que se presta. Assim,
descobre que o caráter moral da civilização é vulnerável diante dos seus
progressos, mas que a mesma não é imoral. Durkheim destaca, entre os elementos
que compõem a civilização, o elemento econômico, como um exemplo de atividade
que corresponde a necessidades que não são morais. E a ciência como o único
elemento, que em certas condições, apresenta um caráter moral. O
desenvolvimento intelectual se torna um dever para os indivíduos nas sociedades,
nas quais surgem com o desenvolvimento, uma necessidade, no campo da
consciência social e individual, de conhecimentos ou verdades científicas que
todos devem assimilar e possuir. Essa necessidade garante o progresso e as
mudanças necessárias na sociedade, e por isso, justifica sua relevância na vida
coletiva.
A divisão do
trabalho não será apenas a fonte única do desempenho social, mas também de uma
suposta solidariedade social. E que a mesma extrapola a idéia de um fenômeno
puramente econômico, que diz respeito apenas as estruturas e o meios de
produção de uma sociedade, mas que é a condição necessária para todas elas.
Essa divisão contínua dos diferentes trabalhos humanos torna a organização
social ou o organismo social cada vez mais complexo.
Examinando a
solidariedade social produzida pela divisão do trabalho, ou ainda, a sua
validade para a integração social, para coesão social, Durkheim descobre que a
solidariedade é um fenômeno moral e que por isso é intangível. Procura então
algo que simbolize fora dos indivíduos essa solidariedade, esse sentimento que
integra o escopo social. Descobre o direito como o símbolo desse sentimento
intangível, que se manifesta fortemente inclinando os homens uns para os
outros.
Quanto maior o
número de relações entre os homens, maior será proporcionalmente o número de
regras jurídicas que as determinam. Assim o direito seria a organização estável
e precisa da sociedade. O direito tem origem nos costumes, e algumas relações
podem simplesmente escapar as determinações do direito, mas isso são casos
excepcionais. Por outro lado, o direito reproduz as formas principais da
solidariedade social. O método durkhemiano consiste em categorizar as
diferentes espécies do direito e, a partir dessas categorias, descobrir quais
são as diferentes espécies de solidariedade social que cada uma delas
correspondem.
Para Durkheim
existem duas espécies de regras jurídicas: as de sanções repressivas, que dizem
respeito ao direito penal. E as de sanções restitutivas, que correspondem ao
direito civil, comercial, administrativo, processual e constitucional. Todas
elas garantindo a coesão social.
A
solidariedade social que representa o direito repressivo é aquela cuja a sua
ruptura, ocasionada por qualquer agente constitui o crime. Definindo a acepção
crime, como atos universalmente reprovados pelos membros de cada sociedade,
Durkheim descobre um elemento que se encontra em todas as consciências
individuais. O crime é capaz de gerar sentimentos em todas as consciências, os
sentimentos coletivos que correspondem a um crime são medidos pela sua
intensidade média. Isso demonstra o
efeito refratário do direito penal, ou das sanções repressivas. O crime é,
pois, caracterizado por determinar a pena. E essa pena é uma reação passional
da sociedade em punir o seu agente, isso é uma característica própria das
sociedades menos cultas, nas quais as sanções repressivas são mais comuns.
Através da natureza dos sentimentos coletivos que a pena é explicada.
Nas sociedades mecânicas a consciência
coletiva exerce poder de coerção sobre os indivíduos. Nessas sociedades os
indivíduos se identificam, por similitudes, crenças e sentimentos em comum, que
ligam o indivíduo a sociedade. É essa solidariedade mecânica que o direito
penal exprime. Ela é o produto das similitudes sociais, e tem por efeito manter
a coesão social que resulta dessas similitudes. Do mesmo modo é o objetivo da
pena, que é manter a consciência comum, concentrando e aproximando as
consciência honestas.
Já as sanções
restitutivas constituem outro tipo de solidariedade. Elas exprimem uma
solidariedade que Durkheim chamou de orgânicas. Que diferente das penais que
são expiatórias, elas são de restauração. Elas se distanciam da consciência
comum, base vital da solidariedade mecânica, e quanto mais se distancia dessa
consciência comum, mais precisa se especializar, mais precisa de instituições
especializadas para se manter na sociedade.
Por ser
estranho a consciência comum esse direito, o qual representa as sanções
restitutivas, não afeta imediatamente a sociedade. Ele se estabelece entre
litigantes sem a mediação social afirmando que a regra é coisa social e que age
no sentido de se restabelecer através do litígio. Uma norma fora perturbada e
deve ser restabelecida. A ação social não apenas cria a norma ou a regra, mas é
da sociedade que vem sua legitimidade. Por trás de todo e qualquer contrato
está a sociedade a reconhecer a validade do mesmo.
Por fim, as
relações do direito restitutivo se manifestam sob duas formas: negativas as quais
se reduzem a pura abstenção. E Positivas que redundam em cooperação. A elas
correspondem duas espécies distintas de solidariedade social. As relações
negativas expressas juridicamente sob o nome de direitos reais ligam as coisas
às pessoas. “Ela não faz com que as vontades se movam em direção a fins
comuns, mas apenas que as coisas gravitem com ordem em torno das vontades” (DURKHEIM, 2010, p. 91).
O direito típico do conjunto dos reais é o direito a
propriedade e suas variações, direito esse que por ser a base da organização
social estabelecida é tido como dogma, e, portanto não carece de consenso. Como
não há consenso não existe lugar, também, para o dissenso, esses direitos
isolam os indivíduos, vedam o concurso entre eles em função de sua função social
que é resguardar as relações conservadoras entre as coisas e as pessoas.
As relações pessoa/pessoa do tipo negativo nada mais são do
que outro tipo de relação coisa/pessoa. Pois só ocorrem quando o isolamento
entre os indivíduos relacionados a coisas se rompe. Nesse momento as pessoas
entram em cena para restaurar as relações coisa/pessoa. O concurso que há é
aparente, pois é ocasionado com o fim de se restabelecer a abstenção.
A solidariedade negativa não é um tipo real de solidariedade, mas sim o lado negativo da solidariedade. Desse modo só pode existir em sociedades onde exista sua contra parte a solidariedade positiva. Ambas tem por função o bom funcionamento do organismo social. A primeira é uma espécie de acordo externa que supõe a coesão orgânica, enquanto a segunda é a resultante e a condição dessa coesão.
A solidariedade negativa não é um tipo real de solidariedade, mas sim o lado negativo da solidariedade. Desse modo só pode existir em sociedades onde exista sua contra parte a solidariedade positiva. Ambas tem por função o bom funcionamento do organismo social. A primeira é uma espécie de acordo externa que supõe a coesão orgânica, enquanto a segunda é a resultante e a condição dessa coesão.
A solidariedade de tipo positivo, típica do direito
cooperativo, é a que promove e surge do concurso entre os indivíduos,
manifesta-se no direito que se ocupa da divisão social do trabalho em qualquer
que sejam os seus graus e formas, temos como exemplo: os direitos doméstico,
contratual, comercial, processual, administrativo e constitucional.
segunda-feira, 5 de junho de 2017
O leviatã, com Clóvis de Barros Filho
este vídeo o professor da USP Clóvis de Barros interpreta o estado de natureza e a transição para o estado civil tal como pintado no Leviatã, do grande Thomas Hobbes.
O estado de natureza, nos diz Hobbes, é a condição em que nos encontramos sem os freios criados a partir do advento do governo, que, ainda segundo Hobbes, deve ser soberano e absoluto afim de impedir que nos mantenhamos em guerra constante de todos contra todos. De modo que no estado de natureza, sem impedimentos, aquilo que me mantém distante do objeto do meu desejo é meramente a força que eu possa empenhar para pegar aquilo que quero. No estado de natureza de Hobbes, se eu quero e tenho força suficiente para conseguir, então eu terei.
"No estado de natureza 'é nois'. Não tem limite. O limite é a força. O limite é o desejo. O limite é a saciedade. Portanto o binômio desejo e força, são o binômio do limite da vida no estado de natureza."
VTS 01 1 Maria do Paraguaçu Parte 1
Documentário mostra a trajetória de luta da comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu através da liderança de Dona Maria das Dores de Jesus, Maria do Paraguaçu. Filme dirigido por Camila Dutervil.
Hipácia - Uma das grandes pensadoras da Antiguidade.
"Cirilo, patriarca de Alexandria de 412 até 444, foi um dos responsáveis pelo assassinato brutal de Hipácia, uma das poucas mulheres citadas nos anais de história da matemática. Cirilo também foi canonizado, virou SANTO, mas poucos são aqueles que conhecem a História dessa grande pensadora da Antiguidade!"
Numa tarde de março do ano 415, durante a quaresma, uma mulher de 60 anos é tirada de sua carruagem por uma multidão enfurecida e arrastada até a igreja de Cesarión, antigo templo de culto ao imperador romano César, em Alexandria, no Egito. Lá é despida e tem sua pele e carne arrancadas com ostras (ou fragmentos de cerâmica ou azulejo, segundo outra versão). Acusada de bruxaria, é destroçada viva pela turba desgovernada. Já morta, arrancam seus braços e pernas. O restante do cadáver é queimado em uma pira nos arredores da cidade. Era o fim da trajetória impressionante da primeira mulher matemática da História e uma das principais filósofas da Antiguidade: Hipácia.
Sócrates, o escolástico, século 5
João de Nikiu, século 7
A intelectual, professora carismática que inspirou alguns dos grandes cérebros de seu tempo, tinha influência em diversas esferas da vida pública. O prefeito da cidade, Orestes, indicado por Roma, a consultava antes de muitas de suas decisões. Por isso mesmo, ela tornou-se um obstáculo para a sede de poder de Cirilo, bispo de Alexandria, inimigo político do também cristão Orestes e, possivelmente, o mentor do assassinato da filósofa. Quem foi essa mulher, capaz de se destacar num mundo em que o intelecto era propriedade masculina? Há controvérsia sobre o ano de seu nascimento: 355 é o mais aceito. Fala-se também em 370. Nesse caso, ela teria apenas 45 anos ao ser linchada. Foi criada pelo pai, Teón – grande matemático, astrônomo e diretor do Museu de Alexandria -, nesse ambiente de estudo e pesquisa. Ela superou o mestre na ciência dos números e ainda tornou-se uma expoente do pensamento filosófico neoplatônico. É considerada a última intelectual de destaque da capital egípcia, centro da cultura grega no mundo helenístico.
“Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos”, diz o historiador Sócrates, o Escolástico, na História Eclesiástica, escrita no século 5.
Mulher de enorme beleza, adotou o ascetismo como norma de vida: vestia-se apenas com o manto dos filósofos, uma espécie de túnica branca. Não acumulava riquezas e foi celibatária até o fim da vida. Um episódio ilustra sua rigidez moral: um aluno (eram todos homens), apaixonado, insiste em cortejá-la. Hipácia, então, mostra a ele um de seus panos higiênicos (usados na menstruação): “É isto que tu amas na verdade e não a beleza por si mesma”.
Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época tendo progredido na escola de plantão e plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos.
Hipácia foi a principal representante do neoplatonismo de seu tempo. Dedicava-se a pensar o mundo das ideias em relação ao mundo físico, a investigar se a alma era una ou dividida, a partir de questões metafísicas levantadas pelo filósofo Plotino (205-270). Ensinava em cursos fechados, mas fazia também conferências abertas que atraíam homens poderosos, como Orestes, e visitantes de Roma, Atenas e outras cidades. “Orestes se tornou amigo e confidente de Hipácia. Encontravam-se frequentemente, discutindo não só suas palestras mas também assuntos municipais e políticos. Isso a colocou claramente ao lado dele na luta contra Cirilo. Ela deve ter parecido uma grande ameaça para Cirilo, pois seus discípulos tinham altos cargos, tanto em Alexandria como fora”, diz o matemático americano Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides.
A cidade fundada por Alexandre e sua magnífica biblioteca
Alexandria começou a ser construída em 332 a.C., por Alexandre, o Grande, e em poucos anos se tornou um polo de matemática, filosofia e ciência gregas. Meio século mais tarde, Ptolomeu II ergueu uma enorme biblioteca e um museu – que funcionou como centro de pesquisa. A biblioteca se desenvolveu de forma pouco ortodoxa. “Ptolomeu II, querendo a primeira tradução grega do Antigo Testamento, comissionou o trabalho prendendo 70 doutos judeus em celas na ilha de Faros. Ptolomeu III escreveu a todos os soberanos do mundo pedindo emprestados seus livros, e depois ficou com eles”, diz Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides. A biblioteca reuniu entre 200 mil e 500 mil papiros e, com o museu, transformou a cidade no maior núcleo intelectual da época. O acervo se perdeu aos poucos. Primeiro, sob ataque das tropas de Júlio César, em 48 a.C. No período cristão foram sucessivos golpes e incêndios. Até que, em 640, a ocupação do califa Omar destruiu praticamente toda a coleção.
Política x religião
Nascida numa cidade em que diversas religiões conviviam, ela era pagã. Pouco ia ao templo. Tinha entre seus pupilos muitos alunos cristãos, como Sinésio de Cirene, futuro bispo de Ptolemaida. Suas cartas para Hipácia e outros discípulos são o principal registro sobre ela, a quem adorava. A religião nunca foi um empecilho entre eles.
“No momento em que vive Hipácia, temos uma sociedade em tensão por causa das mudanças político-religiosas. Há vários relatos sobre hostilidades entre judeus e cristãos e cristãos e pagãos. A relativa tolerância religiosa de outrora foi inteiramente abalada pelo radicalismo. Seitas foram expulsas de Alexandria e, cada vez mais, a população era insuflada contra elementos de destaque que poderiam ser considerados uma ameaça à expansão de poder do cristianismo”, afirma a professora de Letras Clássicas Fernanda Lemos de Lima, da Uerj, coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria.
É nesse contexto que Cirilo resolve investir contra a filósofa. Em 413, o bispo já havia expulsado os novacianos e os judeus de Alexandria. Pouco depois, monges atiçados por ele atacaram Orestes, com quem travava uma violenta disputa por poder e influência nos rumos da capital do Egito. Convencido de que Hipácia representava a grande força por trás do prefeito, Cirilo instigou seus seguidores a espalharem pela cidade o boato de que a filósofa era uma bruxa, que usava magia negra para controlar Orestes. A calúnia visava exatamente apavorar a população, diz a historiadora Maria Dzielska em Hipatia de Alejandría (sem edição no Brasil): “Em seu círculo não se utilizam métodos mágicos para entender a natureza do mundo; não há menção de que se ofereçam sacrifícios aos deuses, nem de que se utilizem objetos de culto, nem cerimônias noturnas, nem estátuas que se animam, nem nada disso”. Mas a mentira prosperou. No século 7, o bispo cristão João de Nikiu registra em suas Crônicas: “E naqueles dias havia em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipácia, e ela era devota a todas as sortes de magia, astrolábios e instrumentos musicais, e ela iludiu muita gente através de truques satânicos. E o governante da cidade a respeitava muitíssimo; pois ela o havia iludido através de sua magia”.
Muito antes das fogueiras da Inquisição, a perseguição às mulheres associadas à feitiçaria era comum. Em 430 a.C., em Atenas, Eurípides caracteriza Medeia como uma forasteira adepta da magia. “Já havia um modelo de feiticeira na literatura grega arcaica, como na Odisseia, de Homero, com Circe, Calipso e Helena”, diz a historiadora Maria Regina Cândido, autora de A Feitiçaria na Atenas Clássica. Em busca de alívio para problemas como cólicas e as dores do parto, as mulheres aprenderam a usar ervas medicinais. “Elas eram solicitadas para realizar a ‘magia amorosa’ através de chás e misturas. Mas, em excesso, as poções podiam causar a morte ou a impotência masculina. As questões iam parar nos tribunais sob acusação de prática de feitiçaria, e a sentença era a morte”, afirma a historiadora.
A boataria avançou entre as camadas mais simples da população. Até que, liderada por um homem conhecido como Pedro, o Leitor, uma turba decidiu linchá-la. Para Dzielska, não há dúvida de que foi um assassinato político, já que a autoridade e conexões da matemática “proporcionavam apoio ao representante da autoridade estatal em Alexandria, em detrimento de Cirilo”. A morte da última grande filósofa da Antiguidade clássica deixou toda uma tradição lógica na penumbra durante séculos, até ser redescoberta pelo Renascimento.
(…) ela era devota a todas as sortes de magia (…) e ela iludiu muita gente através de truques satânicos.
Não se sabe nada de Orestes depois da morte de sua mestra. Provavelmente fugiu, deixando a cidade à mercê de Cirilo, que fechou templos e proibiu a prática de qualquer religião ou seita fora do cristianismo tradicional. Ficou à frente da igreja local por mais 20 anos e hoje, canonizado, é conhecido como São Cirilo de Alexandria.
Recentemente, a saga de Hipácia foi resgatada em Agora, de Alejandro Amenabar. O filme, estrelado por Rachel Weisz, foi lançado no último festival de Cannes. Mas a maior parte do trabalho da intelectual se perdeu. Sabe-se que ela escreveu comentários sobre duas importantes obras gregas: a Aritmética, de Diofanto, e as Seções Cônicas, de Apolônio. Comentou ainda o Cânon Astronômico, já que dominava também a astronomia. Acreditava-se que tudo isso havia se perdido num dos incêndios da biblioteca de Alexandria e na determinação de Cirilo em banir a influência da filósofa. Hoje, pesquisadores analisam se parte dos comentários de Teón ao Cânon não seria, de fato, de sua filha. Mais: apenas seis dos 13 livros da Aritmética de Diofanto sobreviveram, e poderiam todos ter origem nos textos de Hipácia. Sabe-se ainda que ela era capaz de construir um astrolábio e um hidrômetro. Da obra filosófica, nada restou escrito por ela. Muito do que discutia com os pupilos era mantido em segredo, por princípio. O que se conhece vem das cartas de Sinésio, ele próprio bispo cristão, mas capaz de referir-se a uma pagã como “minha mãe, minha irmã, mestre e benfeitora minha!”
A evolução do papel feminino a partir das culturas grega e egípcia
Para compreender o espaço do feminino na Alexandria do Egito, é interessante tomar como parâmetro de comparação duas culturas anteriores: a egípcia e a grega, bases do mundo alexandrino.
Na esfera privada do Egito faraônico, a mulher apresenta uma relativa liberdade, traduzida, por exemplo, pela possibilidade de se divorciar e manter parte de seus bens. Já na esfera pública, aparece como sacerdotisa, destacando-se em uma série de cultos reais e, em alguns momentos, como regente que usa as vestes de faraó, como Hatshepsut. Se avançarmos até o Egito ptolomaico, em que os governantes de origem macedônica adotaram os títulos dos faraós anteriores, Arsinoé II e Cleópatra VII também figuram como mulheres poderosas.
Mesmo com o advento da democracia na Atenas do século 5, a mulher, juridicamente, não gozava os direitos de “cidadã”, e não teria, em geral, acesso à educação. Havia, é fato, um espaço de relevo em cerimônias religiosas. Todavia, em termos de ocupação do espaço público, as mulheres abastadas não dispunham de liberdade de circulação, realidade que se mostrava distinta no que diz respeito às classes mais pobres, em que as mesmas precisavam frequentar as ruas para garantir o sustento da família.
Em geral, sabe-se que a mulher, no período helenístico (324- 31 a.C.) e, especialmente, no Egito, apresenta-se de maneira diferente em relação à da Atenas clássica: mais educada, com mais visibilidade, liberdade de trânsito e, no âmbito da realeza alexandrina, com acesso ao poder, auxiliando seus maridos na administração do estado. A condição feminina elevou-se em todo o mundo helenístico. Isso fica evidente na literatura e em outras fontes primárias, como contratos de casamento. Na literatura, há personagens femininas transitando pela cidade em dia de festa (como em As Siracusanas, de Teócrito) ou transformadas em deusas, como Berenice II (esposa de Ptolomeu III), que Calímaco de Cirene, em um epigrama, inclui no grupo central de divindades femininas.
No período de dominação romana do Egito – após a vitória de Augusto sobre Cleópatra e Marco Antônio, que resulta na anexação do Egito aos domínios de Roma (31-30 a.C.) -, a mulher mantém igualmente um status mais elevado que aquele da Atenas clássica, especialmente em termos jurídicos. Há fragmentos de papiros com registros de processos, cartas e negócios que demonstram a busca de mulheres por direitos previstos em lei, como o de autonomia na gestão de seus bens. Um papiro egípcio do século 3 (Oxyrhynchus papyrus 1467. G) chama atenção pelo fato de uma mãe de três filhos pleitear o direito de exercer as funções de kyrios (senhor da casa). O argumento da peticionária era o fato de ser uma mulher educada, capaz de gerir seus negócios. A ideia de haver uma lei que favorecesse mulheres letradas chama atenção sobre o acesso que o sexo feminino tinha ao conhecimento no período de dominação romana. Interessante observar nesses papiros como mulheres romanas, gregas e egípcias são apresentadas como senhoras de bens consideráveis, situação bem diferente da vivida pela mulher da Atenas clássica, mas não tão diferente da experienciada pelas egípcias do período faraônico.
No âmbito da literatura do período imperial romano, o romance grego, que se desenvolve a partir do século 1 a.C., apresenta uma simetria entre protagonistas femininos e masculinos. Além disso, as personagens femininas desempenham papéis de destaque nas diegeses, seja como as protagonistas que, perto ou longe de seus pares amorosos, vencem os inúmeros desafios através de atitudes inteligentes e de boa argumentação, seja como “vilãs” astuciosas.
A figura da mulher-filósofa – única mulher a dirigir o Museu de Alexandria – merece ser lembrada não para falar de uma regra de liberdade feminina na sociedade alexandrina antes do período bizantino, mas sim para fazer com que se possa refletir como houve um crescimento considerável do campo de atuação do feminino nesse mundo pagão alexandrino, que encontra seu ocaso simbólico no assassinato de Hipácia, sophia da ágora alexandrina.
Fernanda Lemos de Lima, professora de Letras Clássicas na Uerj e coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria
quarta-feira, 3 de maio de 2017
Belchior - Entrevista na Rádio Nacional (1979)
Para que possamos entender um pouco sobre a grande obra deixada por esse cantor e compositor incomum na história da música popular brasileira.
terça-feira, 25 de abril de 2017
O Ritual do Corpo entre os Sonacirema
[Horace Minner]
O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a
diversidade de modos com que diferentes povos reagem diante de situações
similares, que ele não consegue se surpreender com os costumes mais exóticos
possíveis. Com efeito, se quaisquer entre todas as combinações logicamente
possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas em alguma parte do
mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar presentes em alguma
tribo ainda não estudada. Esta observação já foi realmente feita pro Neerdeek,
no que diz respeito à organização clânica. Neste sentido, as crenças e práticas
mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais que nos parece
importante descrevê-los como exemplo dos extremos a que o comportamento humano
pode chegar.
O Prof. Linton foi o primeiro a chamar a atenção
dos antropólogos para o complexo ritual dos Sonacirema, há vinte anos atrás,
mas a cultura deste povo é ainda pouco compreendida. Os Sonacirema são um grupo
norte-americano que vive no território que se estende desde os Cree do Canadá,
aos Yaqui e Tarahumara do México, e aos Caribe e Aruaque das Antilhas. Pouco se
sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do
leste.
A cultura Sonacirema se caracteriza por uma
economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um habitat
cultural muito rico. Embora a maior parte do tempo das pessoas, nesta
sociedade, seja devotada à ocupação econômica, uma grande porção de frutos
destes trabalhos e uma considerável parte do dia são despendidas em atividades
rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde
constituem a preocupação dominante de ethos deste povo. Embora
tal tipo de preocupação não seja realmente pouco comum, seus aspectos
cerimoniais e a filosofia aí implícitas são únicas.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema
parece ser a de que o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a
debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é
evitar estas características, através do uso de poderosas influências do ritual
e de cerimônia. Todo o grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a
tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários
santuários em sua casa e, de fato, a opulência de uma casa é freqüentemente
aferida em termos da quantidade dos centros de rituais que abrigam. A maioria
das casas é de taipa, mas os santuários dos mais ricos têm as paredes cobertas
de pedra. As famílias mais pobres imitam os ricos, aplicando placas de cerâmica
nas paredes dos seus santuários.
Embora cada família possua ao menos um destes
santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim
privadas e secretas. Os ritos, normalmente, só são discutidos com as crianças,
e isto apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nestes
mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me
permitiu examinar este santuário e anotar a descrição destes rituais.
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca
embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções
mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e
poções são obtidos de vários profissionais especializados. Dentre estes, os
mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços devem ser retribuídos por
meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções
curativas para seus clientes, decidindo apenas os ingredientes que nelas devem
entrar, escrevendo-os em seguida em uma linguagem antiga e secreta. Tal escrito
só pode ser decifrado pelo curandeiro e pelos herbanários, os quais, mediante
outros presentes, fornecem o feitiço desejado.
O feitiço não é descartado depois de ter servido a
seu propósito, mas sim colocado na caixa de mágica do santuário doméstico. Como
estes materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se
que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágicas
costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as
pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de novo. Embora os
nativos tenham se mostrado vagos em relação a esta questão, só podemos concluir
que a idéia subjacente ao costume de se guardar todos os velhos materiais
mágicos, é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da qual os rituais
do corpo são encenados, protegem de alguma forma o fiel.
Embaixo da caixa de mágicas existe uma pequena
fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do
santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos
de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução. As águas sagradas
são obtidas do Templo da água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem
elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente puro.
Na hierarquia dos profissionais da magia e abaixo
do curandeiro em termos de prestígio, estão os especialistas, cuja designação é
melhor traduzida por “homens-da-boca-sagrada”. Os Sonacirema têm um horror pela
boca e uma fascinação por ela que chega às raias da patologia. Acredita-se que
a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Não
fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas
gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam,
seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na existência de uma forte
relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma
ablução ritual da boca das crianças que se considera como forma de desenvolver sua
fibra moral.
O ritual do corpo cotidianamente realizado por
todos inclui um rito bucal. Apesar de sabermos que este povo é tão meticuloso
no que diz respeito ao cuidado da boca, este rito envolve uma prática que o
estrangeiro não-iniciado não consegue deixar de achar repugnante. Conforme foi
descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na
boca, juntamente com certos pós mágicos, e em seguida na movimentação deste
feixe segundo uma série de gestos altamente formalizados.
Além deste rito bucal privado, as pessoas procurar
um homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes por ano. Estes profissionais possuem
uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes,
furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da
boca implica uma quase e inacreditável tortura ritual do cliente. O
homem-da-boca-sagrada abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas,
alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Materiais mágicos são
então depositados nestes buracos. Se não se encontram buracos naturais nos
dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serrados, para que a substância
sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do cliente, o objetivo destas
aplicações é deter ao apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter
extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os
nativos retornam todo ano ao homem-da-boca-sagrada, embora seus dentes
continuem a se deteriorar.
Deve-se esperar que quando um estudo intensivo dos
Sonacirema for feito, seja realizada uma pesquisa cuidadosa sobre a estrutura
de personalidade destes nativos. Basta observar o brilho nos olhos de um
homem-da-boca-sagrada quando ele enfia uma agulha em um nervo exposto, para que
se suspeite de que uma certa dose de sadismo está presente. Se isto puder ser
verificado, uma configuração muito interessante emergirá, posto que a maioria
da população mostra tendências masoquistas bem definidas. Era a tais tendências
que o Professor Linton se referia, ao discutir uma parte especial do ritual
cotidiano do corpo, que é apenas realizada pelos homens. Esta parte do rito
envolve uma arranhadura e laceração da superfície do rosto por meio de um
instrumento cortante. Ritos femininos especiais ocorrem somente quatro vezes
por mês lunar, mas o que lhes falta em freqüência, lhes sobra em barbárie. Como
parte desta cerimônia, as mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos
durante mais ou menos uma hora. O ponto teoricamente interessante é que um povo
dominantemente masoquista desenvolve especialistas sádicos.
Os curandeiros possuem um templo imponente, o
latipsoh, em cada comunidade de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas,
necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas
neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo
permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa e
um penteado distintivos.
As cerimônias latipsoh são tão violentas que chega
a ser fenomenal o fato que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes
que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é
ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de leva-las ao templo,
alegando que “é aonde você vai para morrer”. Apesar disto, os doentes adultos
não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se à prolongada
purificação ritual, se eles possuem meios para tanto. Os guardiões de muitos
templos, não importa quão doente o suplicante ou quão grave a emergência, não
admitem o cliente se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Mesmo
depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiões
não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.
O(a) suplicante, ao entrar no templo, é
primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os
Sonacirema evitam a exposição de seus corpos quando das suas funções naturais.
O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário
doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. A súbita
perda da privacidade corporal, ao se entrar no latipsoh, costuma causar um
choque psicológico. Um homem, cuja própria mulher jamais viu quando ele
realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma
vestal, enquanto executa assim suas funções naturais dentro de um vaso sagrado.
Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas
por um adivinho para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente.
Os clientes femininos, por seu lado, vêm seus corpos nus submetidos ao
escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente
bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitados nas camas duras. As
cerimônias, como os já citados ritos do homem-da-boca-sagrada, implicam
desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada
seus miseráveis pacientes, rolam-nos em seus leitos de dor, enquanto realizam
abluções, cujos movimentos formalizados são objeto de treinamento intensivo das
vestais. Em outros momentos, elas inserem varas mágicas na boca do paciente, ou
obrigam-no a comer substâncias que são consideradas curativas. De tempos em
tempos, os curandeiros vêm até seus pacientes e atiram agulhas magicamente
tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não
curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo
nos curandeiros.
Ainda resta um outro tipo de especialista, conhecido
como um “escutador”. Este feiticeiro tem o poder de exorcizar os demônios que
se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Sonacirema
acreditam que os pais fazem feitiçaria entre sues próprios filhos. As mães são
especialmente suspeitas de colocarem uma maldição na criança, enquanto ensinam
a elas os ritos corporais secretos. A contra-magia do feiticeiro “escutador” é
singular por sua relativa ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao
“escutador” todos os seus problemas e medos, começando com as primeiras
dificuldades de que pode se lembrar. A memória exibida pelos Sonacirema nestas
sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum que o paciente
lamente a rejeição que sentiu ao ser desmamado, e alguns indivíduos chegam a
localizar seus problemas nos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento.
Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas
que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada
ao corpo e às funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas
ficarem magras, e banquetes cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem
gordas. Outros ritos ainda são usados para fazer os seios das mulheres maiores,
se eles são pequenos, e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral
com a forma dos seios é simbolizada pelo fato de que a forma ideal está
virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que
sofrem de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que
podem viver muito bem através de simples viagens à aldeia, permitindo aos
nativos admirá-los mediante uma taxa.
Já fizemos referências ao fato de que as funções
excretórias são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao domínio do secreto. As
funções reprodutivas naturais são igualmente distorcidas. O intercurso sexual é
tabu como tópico de conversa, e programado e planejado enquanto ato. Grandes
esforços são feitos para evitar a gravidez por meio de uso de materiais
mágicos, ou pela limitação do intercurso em certas fases da lua. A concepção é
realmente muito pouco freqüente. Quando grávidas, as mulheres se vestem de
forma a ocultar seu estado. O parto se realiza em segredo, sem amigos ou
parentes assistindo, e a maioria das mulheres não amamenta nem cuida dos seus
bebês.
Nossa descrição da vida ritual dos Sonacirema
certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil
compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos
pesados fardos que eles mesmos se impuseram. Mas, mesmo os costumes tão
exóticos quanto estes, ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir
do esclarecimento feito por Malinowski, quem escreveu:
“Olhando de cima e de longe, dos lugares seguros e
elevados da civilização desenvolvida, é fácil ver toda a rudeza e a irrelevância
da magia. Mas sem este poder e este guia, o homem primitivo não poderia ter
dominado as dificuldades práticas como fez, nem poderia o homem ter avançado
até os mais altos estágios da civilização.”
[NE) Tradução atribuída a Eduardo B. Viveiros de
Castro, versão original em inglês disponível em
http://www.ohio.edu/people/thompsoc/Body.html
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