terça-feira, 15 de agosto de 2017

Antropologia Clássica e o surgimento do método Etnográfico



É com o surgimento da etnografia como método de pesquisa na Antropologia, no início do século XX, que a pesquisa antropológica se enriquece e, ao mesmo tempo, demonstra diferenciação das outras áreas de estudos, no que comumente se definiu como ciências humanas.
            A partir do momento que surge a necessidade de se abandonar a repartição de tarefas, típica da Antropologia Clássica do século XIX, entre o observador (viajante, missionário, administrador), aquele que costumeiramente caberia a tarefa de colher informações sobre outros povos, costumes e culturas, e o pesquisador erudito, este dedicado a analisar e interpretar tais informações, é que na Antropologia começa a surgir o enfoque na relevância do pesquisador (antropólogo) em aprender a viver com a comunidade estudada, aprender a viver como as pessoas da própria comunidade, aprendendo a língua, a pensar, sentir e se relacionar da maneira da comunidade. 
             Na tentativa de reconstrução da história dos povos humanos, a Antropologia do século XIX partia de uma perspectiva evolucionista demonstrando que no percurso de desenvolvimento das culturas alguns povos teriam alcançado o estágio de “povos civilizados” e outros teriam estacionados em estágios inferiores de “selvageria” ou “barbárie”. O papel do antropólogo se resumia a análise dos relatos de viajantes, expedições científicas, missionários ou informes das oficinas coloniais, materiais volumosos que ocupavam o pesquisador em seu gabinete, resumindo suas reflexões a deduções e especulações etnocêntricas.
            Mas é a partir do século XX que o trabalho de campo passa a ser um fator decisivo nas pesquisas, garantindo a justificação das análises, o caráter comprobatório dos estudos e dos dados observados, pois o pesquisador se torna agora testemunha ocular cabal e factual do que está sendo interpretado, buscando afastar o máximo possível os preconceitos de uma cultura tida como mais evoluída e, por isso mais civilizada, em relação a uma outra inferior, barbara, exótica e primitiva. Surge então a necessidade de se rever o método de pesquisa na Antropologia, Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942) são exemplos dessa nova forma de interpretação das culturas que marca o surgimento da Etnografia.
            Franz Boas  jovem cientista alemão, começa suas pesquisas no Ártico canadense com seus estudos sobre a cultura, buscando analisar os Esquimós daquela região pouco estudada, na tentativa de colher dados antropológicos, (destaque para a Antropologia que ainda estava se constituindo como ciência), como forma de entender a dinâmica de formação das culturas, interpretando e fazendo um paralelo com nosso estilo de vida, Boas desperta para a reflexão crítica sobre interpretações deterministas e estabelece como forma de análise das culturas o que ficou conhecido como enfoque microssociológico, rompendo com a perspectiva evolucionista. Para Boas a complexidade dos fenômenos etnológicos, aparentemente simples, não podiam ser explicados por uma só causa, esses decorrem de vários fatores, para interpretá-los seria necessário um estudo minucioso de cada cultura específica.

Ainda estamos buscando as leis que governam o desenvolvimento da cultura humana, do pensamento humano; mas reconhecemos o fato de que, antes de buscarmos o que é comum a toda cultura, devemos analisar cada cultura com métodos cuidados e exatos, como o geólogo analisa a sucessão e a ordem dos depósitos, como o biólogo examina as formas de matéria viva (BOAS, 2004, p.140).

Portanto, já é possível perceber com Boas a necessidade para o Antropólogo de se estudar através do contato de campo as microssociedades, como condição para sua compreensão cientifica. Da ilha Vancouver e passando pela atual Colúmbia Britânica, seus estudos e trabalho de campo para a Associação Britânica sobre os índios do noroeste da América, marcam as contribuições do seu estilo de interpretação antropológica, que não esteve apenas resumido a pesquisa cientifica, mas também esteve associado a necessidade do antropólogo se engajar politicamente e participar ativamente da vida pública na qual estiver inserido. Foi o que o mesmo fez, quando encarou problemas étnicos e raciais nos Estados Unidos da América, e quando participou de uma assembleia de profissionais negros, além de ter escrito sobre outros temas polêmicos no EUA.
Mas foi com Bronislaw Malinowski que a importância da pesquisa de campo foi radicalizada, procurando compreender por dentro da comunidade estudada o que sentem homens e mulheres pertencentes a uma cultura não-ocidental, este jovem polonês inovou o método de pesquisa na Antropologia. Foi nas ilhas Trobriand, onde viveu por mais de três anos, que surgiu uma de suas obras fundamentais Argonautas do Pacífico Ocidental (1922), na qual o autor discorre sobre o método e o objetivo de sua pesquisa, formulando na sua introdução, pela primeira vez, o significado do método etnográfico. Os argonautas são uma complexa narrativa, simultaneamente sobre a vida trobiandesa e sobre o trabalho de campo etnográfico. Ela é arquetípica do conjunto de etnografias que com sucesso estabeleceu a validade científica da observação participante (CLIFFORD, 1998, p.27).
Malinowski entendia que no estudo de uma sociedade, o antropólogo deve tomá-la em sua totalidade, buscando ao máximo compreender os modos de vida e de pensar da sociedade estudada. Funda com isso uma espécie de antropologia da alteridade, dedicando-se ao estudo particular das características de cada cultura, negando assim, a interpretação evolucionista. Seu contato com os trobiandeses, o fez refletir sobre o método que vinha sendo usado pela Antropologia, ele propunha, que o antropólogo deveria conviver um longo período entre os “primitivos”, aprendendo a língua e os costumes como meio para não ser percebido. Só assim, o pesquisador estaria apto a captar, o que ele chamou de “ponto de vista do nativo”.
Assim, ao estudar os trobiandeses, Malinowski demostrou que seus costumes, por mais que sejam muito diferentes dos nossos, apresentavam lógica e coerência, desmistificando a visão etnocêntrica de que esses povos, e outros não-ocidentais, eram ignorantes e com tradições estúpidas, por terem parado no tempo. Foi assim, quando descobriu a rigorosa e complexa organização econômica do Kula, uma forma de troca de caráter intertribal praticadas por comunidades localizadas num extenso conjunto de ilhas do norte ao leste e extremo oriental da Nova Guiné.
O método etnográfico, proposto por Malinowski, se apresenta como uma ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário do que em outras ciências (MALINOWSKI, 1984, p.18). A observação direta das declarações e interpretações nativas, atreladas a intuição psicológica do autor, captaria as impressões mais próximas da realidade do nativo, possibilitando ao antropólogo o possível entendimento da sociedade estudada. Assim, o caráter científico do método etnográfico levaria em conta não apenas a observação dos fatos in loco, mas também na bagagem teórica que o antropólogo levaria consigo para o campo. O que Malinowski definiu como “esquema mental”, necessário para estabelecer os roteiros e os caminhos possíveis na pesquisa.

O tratamento científico difere do senso comum, primeiro, pelo fato de que o cientista se empenha em continuar sua pesquisa sistemática e metodicamente, até que ela esteja completa e contenha, assim, o maior número possível de detalhes; segundo, porque, dispondo de um cabedal científico, o investigador tem a capacidade de conduzir a pesquisa através de linhas de efetiva relevância e a objetivos realmente importantes. (MALINOWSKI, 1984, p.24).

            A etnografia aparece como um método de observação, mas não uma observação passiva, e sim uma observação participante, das práticas, dos comportamentos, uma vivência prolongada com os nativos, estando presente na comunidade estudada, prestando atenção ao que fazem e sobre o que dizem em relação ao que estão fazendo, tomando nota de campo e coletando dados, tudo isso torna-se relevante no método inovador proposto por Malinowski em sua Antropologia Social. Esta consiste num estudo de um objeto por vivência direta da realidade onde este se insere.
            Com este novo método definido, a Antropologia passa agora a entender as culturas como um todo, mudando o seu objeto, que antes eram tribos, índios, esquimós, primitivos etc. passando a se interessar pelas sociedades humanas, sejam elas quais for. É nossa tarefa estudar o homem e devemos, portanto, estudar tudo aquilo que mais intimamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce sobre ele (MALINOWSKI, 1984, p.34).
            A recusa a perspectiva evolucionista, passando por essa nova fase da pesquisa de campo, possibilitou o desenvolvimento na Antropologia em levar em consideração a diversidade cultural. Essa diversidade não estava agora associada a um processo evolutivo único, nos quais alguns povos diferiam por suas formas culturais tomadas como simples, atrasadas, primitivas em relação a outras mais desenvolvidas, civilizadas.
             A etnografia tomada como texto, ou relato escrito resultante da pesquisa de campo sobre uma cultura, passa a ser um método de análise inserido na Antropologia que passa agora, depois das contribuições de Malinowski, a ter autoridade entre os antropólogos. O método etnográfico se apresenta como um suposto “mergulho” na vida cotidiana do “Outro”, que o antropólogo pretende estudar. E esse mergulho servirá como modelo para outros teóricos e estudiosos da cultura que adotarem o método etnográfico em suas pesquisas.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

O dualismo da Natureza humana e as suas condições sociais.

RESUMO:


      Nesta obra, Émile Durkheim propõe uma investigação acerca da origem da dualidade da natureza humana expressa na imagem do homem como um ser dividido em corpo e alma, uma divisão constitucional que isola e opõe dois mundos distintos. De um lado estão os apetites sensíveis, egoístas que se referem a nossa individualidade; de outro as atividades do espírito, como o pensamento conceitual e a ação moral, necessariamente universalizável, com fins impessoais.
    A partir desse dualismo, Durkheim apresenta a chave para o entendimento do homo duplex (expressão do próprio Durkheim), a constatação de um duplo centro de gravidade da vida interior. Esse dualismo da natureza humana em corpo e alma, como realidades opostas presentes num único ser, também se constata na vida psíquica. A nossa vida interior apresenta estados de consciência opostos, não apenas por suas origens, mas também por suas propriedades. Há em todos nós dois seres que se opõem e que nos constituem.
     A individualidade é representada em nossa vida psíquica através de nossas sensações, nossos apetites, nosso egoísmo, ela só depende de si própria para se satisfazer. Mas há também em nós algo que ultrapassa nossa individualidade, que faz com que cada um de nós se afaste dos instintos e das inclinações do corpo, em nome de algo impessoal, que “exprime outra coisa que não nós mesmos.” (Durkheim, 292, 1970).
      Para responder essa questão, Durkheim primeiramente analisa as explicações existentes acerca desse dualismo, (o monismo empírico e o idealista) demonstrando que elas apenas tratam o problema de maneira aparente. Enquanto o empirismo coloca a experiência sensível como fonte de todo o conhecimento, como origem dos conteúdos da atividade intelectual, o idealismo despreza a realidade sensível em nome de uma suposta superioridade das idéias, que são perfeitas e infinitas. Essas duas correntes filosóficas não respondem a questão sobre a coexistência de realidades opostas em um único ser. Assim como também a teoria kantiana, que para Durkheim, também não resolve o problema do dualismo da existência, pois propõe o dilema em outros termos, mas não o encerra. Para Kant esse dualismo está fundado na existência simultânea de duas faculdades distintas, sensibilidade e razão, que dão conta respectivamente do particular e do universal.
       Voltando ao problema em questão, como explicar a origem no mesmo ser de atitudes contrárias, o método sociológico, apresentado por Durkheim, se apresenta com maior razoabilidade. Para Durkheim, essa constituição psíquica, assim como nosso organismo, é produto de uma gênese que seria o social. Assim, o espírito humano é comparável aos outros fenômenos observáveis e pode ser analisado como uma coisa, objetividade. Esse dualismo, segundo o sociólogo alemão, seria uma espécie de particularidade da divisão do mundo das coisas em sagradas e profanas, que podem ser verificadas na base de todas as religiões e, deve se explicar segundo os mesmos princípios.
      Há uma hierarquia entre as funções psíquicas que colocam a alma numa instância superior ao corpo. As coisas sagradas possuem autoridade que se impõe sobre as vontades individuais. Elas são ideais coletivos e são investidos, devido a sua origem, de uma autoridade diante dos indivíduos que as pensam e que neles acreditam, são representados sob a forma de forças morais que os dominam e que os apóiam. Quando estes idéias impelem a vontade individual, o indivíduo se sente conduzido, arrastado, dirigido por energias singulares que, não vem dele próprio, mas que são impostas, posteriormente respeitadas, devido ao reconhecimento e o conforto que elas traduzem. Esses mesmos ideais coletivos interligam os homens, através dessa operação psíquica entre pluralidade de consciências individuais numa consciência comum. Ideais coletivos ou representações coletivas se constituem encarnando-se em objetos materiais, coisas, seres de todas as espécies, que os traduzem exteriormente e os simbolizam. É através desse processo que a comunhão entre as consciências se dá.
      Para Durkheim, esse despertar de forças morais, que são respeitas, temidas, procuradas como forças benéficas, são colocadas num plano diferente daquelas, que são vulgares e que interessam apenas a nossa individualidade física. São ideais produtos da vida coletiva e só existem nas consciências individuais, quando são organizadas de maneira duradoura. 

A produção dos indivíduos socialmente condicionada, em Karl Marx.




         Nascido na Alemanha, na cidade de Treves, Karl Marx escreveu sobre filosofia, economia e sociologia. Seu pensamento é um dos mais difíceis de compreender, explicar ou sintetizar, por tamanha riqueza e desdobramentos que vão além do campo teórico e científico. Com o objetivo de entender o sistema capitalista e modificá-lo, Marx produziu muito, suas ideias se desdobraram em várias vertentes e foram incorporadas por diferentes estudiosos. A recepção do seu pensamento no cenário mundial, se deu tanto pelo caráter universal de seus princípios, o caráter totalizante que imprimiu às suas ideias, como também, ao caráter político, militante de suas ideias divulgadas e voltadas para a ação prática, ou ainda, para a práxis revolucionária.
            Marx foi sensível as dificuldades enfrentadas pela Europa, numa época de pleno desenvolvimento capitalista, apontou as contradições desse modo de organização social, que quanto mais crescia, mais aprofundava seus conflitos e dissensões. As revoluções burguesas eclodiam por todo o velho continente fruto de um processo histórico que cada vez mais se constituía e condicionava as relações do mundo vivido. Destacando as contradições básicas da sociedade capitalista e as possibilidades de superação da mesma, em época de grande efervescência social, de lutas sociais que eclodiam por toda a Europa, o pensamento marxista possibilitou o desenvolvimento não apenas da ciência, mas também da política, da organização dos grupos sociais a partir de uma suposta necessidade política, de uma participação ativa na vida social.
            Influenciado pela filosofia alemã, destacando o pensamento de Georg W. Hegel e Ludwing Feuerbach, além do pensamento político francês e inglês, de Rousseau, conde de Saint-Simon, François-Charles Fourier e Robert Owen, o pensamento marxista também sofreu influência dos economistas ingleses como Adam Smith e David Ricardo. Todos eles necessários para compreensão da reflexão marxista da moderna sociedade capitalista.
            A problemática do trabalho já aparece nas reflexões dos economistas ingleses como um elemento importante na vida social, pois é ele quem gera riqueza para as sociedades. Mas, além de ser capaz de criar valor, esse elemento o trabalho, comum a todas as formas sociais da vida humana, torna-se decisivo para a compreensão crítica do capitalismo, para o seu funcionamento, para o modo como condiciona a vida social. As divisões, as especialidades que o trabalho vem apresentando na sociedade capitalista, para Marx seria o produto de um modo de produção em desenvolvimento, esse modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual (MARX, 1946, p.31).
Pensando assim, o indivíduo aparece condicionado, sua atividade laboral pré estabelecida, para fins privados e estranhos aos seus interesses próprios. O trabalho não é somente um elemento natural, atividade vital, vida produtiva, que constrói e transforma o mundo. Essa força vital, livre e consciente ocupa um lugar de destaque na produção capitalista. Além de gerar valor para as sociedades, no moderno capitalismo, o trabalho alienado afasta do homem sua potencialidade vital, sua objetividade real como ente-espécie, seu objetivo fundamental.

Quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um todo maior: de início, e de maneira totalmente natural, na família e na família ampliada em tribo [Stamm]; mais tarde, nas diversas formas de comunidade resultantes do conflito e da fusão das tribos. Somente no século XVIII, com a “sociedade burguesa”, as diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio para fins privados, como necessidade exterior. (MARX, 2011, p. 40.).
           
Esse trabalho condicionado por um modo especifico de produção, o capitalista, possibilita compreender as contradições do modo de vida mercantil. A forma como os homens ocupam suas vidas cotidianamente seria o resultado de forças antagônicas, de lutas de classes, afirmaria Marx. Assim, partindo da análise do materialismo histórico, teoria abrangente e universal desenvolvida por Marx, que buscava analisar toda e qualquer forma produtiva criada pelo homem, é possível problematizar o modo de produção da sociedade burguesa e consequentemente o trabalho. Os fatores fundamentais que organizam os homens para a produção de bens são: as forças produtivas e as relações de produção. Esses dois fatores são apresentados por Marx já em suas obras da juventude (1841-1844) da seguinte maneira:

(...) na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. (MARX, 1946, p.31).

            As forças produtivas constituem as condições materiais de toda a produção. Seja qual for o processo de trabalho determinados objetos são necessários, matérias-primas extraídas da natureza, determinados instrumentos - conjunto de forças naturais transformadas e adaptadas pelo homem - como ferramentas ou máquinas. As relações de produção são as formas pelas quais os homens se organizam para produzir. Essas formas se referem às diversas maneiras pelas quais são distribuídos os elementos necessários no processo de trabalho, esses elementos são as matérias-primas, os instrumentos, os trabalhadores e o produto final. Essas relações de produção podem ser escravistas, cooperativistas, servis, ou capitalista. Diferentes formas para o que Marx definiu como modo de produção.
            Para Marx (2011, p. 43), toda produção é apropriação da natureza pelo indivíduo no interior de e mediada por uma determinada forma de sociedade. E seja qual for a forma de produção, ela forja suas próprias relações jurídicas, forma de governo etc. A divisão do trabalho aparece nesse caso como que estabelecida pela produção, no capitalismo moderno, no qual existem duas classes que se antagonizam, que constituem a moderna sociedade, essa divisão se mostra como consequência dessa constituição social. Essas duas grandes classes são: a burguesia e o proletariado.
A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado. (...) a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado. (MARX, 2007, p.41).

            Portanto, a divisão do trabalho aparece no pensamento marxista como produto do modo de produção capitalista, que condiciona e estabelece o lugar dos indivíduos na sociedade. A ocupação dos homens é forjada pela forma como eles produzem socialmente, forma determinada pelo modelo capitalista de produção, que expropria a força de trabalho do proletariado. A divisão do trabalho, e sua especificidade, acarretou um distanciamento cada vez maior entre o trabalhador e o produto fruto da sua força de trabalho. A mecanização dos meios de produção se transforma, desde o princípio até o surgimento da indústria moderna, em processos racionalmente operacionais, subdivididos e parciais. Gerando, com isso, um isolamento dos indivíduos, tanto no tocante à produção como também na comunicabilidade entre si.
            Essa fragmentação abstrata, presente nos processos de produção e, também, na divisão do trabalho, estende-se às propriedades psicológicas do indivíduo, submetendo-o a uma passividade contemplativa. Na sociedade burguesa, há a impossibilidade do ponto de vista unitário sobre, não apenas, a atividade realizada e toda comunicação direta entre os trabalhadores, mas também o distanciamento da possível compreensão, por parte do trabalhador, da sua própria existência e do seu próprio desejo. Dessa perspectiva, surge o trabalho alienado. Que separa o proletariado dos meios de produção, do fruto da sua força de trabalho, que se tornaram propriedade do empresário capitalista, da burguesia.

            A concretização da divisão fabril do trabalho, com a primeira Revolução Industrial, tornou a mercadoria uma ocupação, uma atividade produtiva constante que não pode cessar, pois tem que suprimir as necessidades aparentes e impostas pelo mercado à economia mundial. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. (MARX, 2011, p. 60).

A política como vocação, em Max Weber.







Na obra "A Política como Vocação", Max Weber, procura investigar o conceito de política, tentando afastar as acepções mais abrangentes que o próprio conceito abarca. Para Weber, a política se apresenta como uma suposta direção do estado, ou ainda, do agrupamento político hoje denominado “Estado”. Esse estado não se define, sociologicamente, pelos seus fins, nem por supostas tarefas exclusivas, mas por outro lado, pelo meio específico que lhe é peculiar, que seria o uso da coação física.
Weber chega a afirmar que todo estado se funda na força, ou melhor, que a violência é o instrumento específico do estado. E que há entre o Estado e a violência uma relação íntima, que pode ser observado, ao longo do tempo, nos mais diversos agrupamentos políticos, a começar pela família. A noção moderna do estado como comunidade humana que reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física, concentra a idéia weberiana do fundamento do estado como única fonte do direito à violência e, por conseguinte a definição da política como “o conjunto de esforços com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado” (WEBER, Max, p.67).
A noção de Estado trás consigo a relação de dominação do homem sobre o homem, que historicamente é possível de se observar em qualquer tipo de agrupamentos políticos. Sendo assim, todo e qualquer homem que se entrega a política tem por finalidade a aspiração ao poder, tanto para fins pessoais, egoístas ou ideais, ou pelo desejo do poder pelo poder, gozando dos prestígios que este o confere. A dominação legítima seria um elemento relevante, nas investigações de Weber, para entender quais as razões que justificam essa dominação e ainda, quais as justificativas externas que as sustentam.
Para Weber, existem três razões internas que justificam a dominação, e que também servem de fundamentos da legitimidade da dominação. Essas razões se traduzem como o poder tradicional, o poder carismático e, por fim, o poder legalista, ou da legalidade. O tradicionalista diz respeito a autoridade do “passado eterno”, ou em outras palavras dos costumes santificados enraizados nos homens que os respeitam. O poder carismático se configura numa espécie de autoridade que se funda em dons pessoais e extraordinários de um indivíduo (carisma), devoção e confiança estritamente pessoais depositadas em alguém. E por último o poder legalista ou da legalidade, este fundado na crença da validade de um estatuto legal e de uma competência positiva, fundada em regras racionalmente estabelecidas, ou melhor, a autoridade fundada na obediência, que reconhece obrigações estabelecidas conforme um estatuto.
Todas essas formas de dominação são entendidas como uma dominação organizada, que lança mão de meios para afirmar a sua autoridade. Os meios que dispõem os homens políticos para dar continuidade à dominação são por um lado um estado-maior administrativo e, por outro lado, os meios materiais de gestão. Esses elementos fornecem a o entendimento acerca da natureza da autoridade e, por conseguinte a legitimidade da dominação.
O estado-maior representa externamente a organização de dominação política, que não se sustenta apenas pela obediência ao detentor do poder em razão das três concepções de legitimidade, mas também através de duas espécies de obediência que se relacionam a interesses pessoais: retribuição material e prestígio social. Tomados como exemplo: os vencimentos dos funcionários públicos, a homenagem dos vassalos e da outra parte, a honra dos cavaleiros, os privilégios das ordens e a dignidade do servidor. O medo de perder o conjunto dessas vantagens é a razão decisiva da solidariedade que liga o estado-maior administrativo aos detentores do poder.
Para garantir a continuidade de uma dominação que se sustenta no uso da violência, ou da força, se faz necessário certos bens materiais. Sendo assim, Weber classifica as administrações em duas categorias. A primeira obedece ao seguinte princípio; o estado-maior, os funcionários ou outros magistrados, os quais os detentores do poder depende, são eles próprios, os proprietários dos instrumentos de gestão, instrumentos que podem ser recursos financeiros, edifícios, material de guerra, parque de veículos, cavalos etc. A segunda categoria obedece a um princípio oposto; o estado-maior é “privado” dos meios de gestão, assim como nos dias atuais, nos quais o empregado e o proletariado são “privados” dos meios materiais de produção numa empresa capitalista.


Sobre a "Divisão do Trabalho Social" em Durkheim.












Émile Durkheim em sua obra Da Divisão do Trabalho Social, propõe um análise acerca da importância da divisão do trabalho para o desempenho da organização social. Destacando a divisão do trabalho como um fenômeno social e distinguindo o seu método de análise da sociedade dos métodos moralistas, que comumente atribuíam às regras morais o fundamento da organização social, o sociólogo francês, ao contrário, demonstra a objetividade da divisão do trabalho, sua realidade social como “condição necessária do desenvolvimento material e intelectual das sociedades” (Durkheim).
Ao destacar a divisão do trabalho como realidade, parte para o entendimento da necessidade social que ela corresponde. Qual a sua função ou, a que se presta. Assim, descobre que o caráter moral da civilização é vulnerável diante dos seus progressos, mas que a mesma não é imoral. Durkheim destaca, entre os elementos que compõem a civilização, o elemento econômico, como um exemplo de atividade que corresponde a necessidades que não são morais. E a ciência como o único elemento, que em certas condições, apresenta um caráter moral. O desenvolvimento intelectual se torna um dever para os indivíduos nas sociedades, nas quais surgem com o desenvolvimento, uma necessidade, no campo da consciência social e individual, de conhecimentos ou verdades científicas que todos devem assimilar e possuir. Essa necessidade garante o progresso e as mudanças necessárias na sociedade, e por isso, justifica sua relevância na vida coletiva.
A divisão do trabalho não será apenas a fonte única do desempenho social, mas também de uma suposta solidariedade social. E que a mesma extrapola a idéia de um fenômeno puramente econômico, que diz respeito apenas as estruturas e o meios de produção de uma sociedade, mas que é a condição necessária para todas elas. Essa divisão contínua dos diferentes trabalhos humanos torna a organização social ou o organismo social cada vez mais complexo.
Examinando a solidariedade social produzida pela divisão do trabalho, ou ainda, a sua validade para a integração social, para coesão social, Durkheim descobre que a solidariedade é um fenômeno moral e que por isso é intangível. Procura então algo que simbolize fora dos indivíduos essa solidariedade, esse sentimento que integra o escopo social. Descobre o direito como o símbolo desse sentimento intangível, que se manifesta fortemente inclinando os homens uns para os outros.
Quanto maior o número de relações entre os homens, maior será proporcionalmente o número de regras jurídicas que as determinam. Assim o direito seria a organização estável e precisa da sociedade. O direito tem origem nos costumes, e algumas relações podem simplesmente escapar as determinações do direito, mas isso são casos excepcionais. Por outro lado, o direito reproduz as formas principais da solidariedade social. O método durkhemiano consiste em categorizar as diferentes espécies do direito e, a partir dessas categorias, descobrir quais são as diferentes espécies de solidariedade social que cada uma delas correspondem.
Para Durkheim existem duas espécies de regras jurídicas: as de sanções repressivas, que dizem respeito ao direito penal. E as de sanções restitutivas, que correspondem ao direito civil, comercial, administrativo, processual e constitucional. Todas elas garantindo a coesão social.
A solidariedade social que representa o direito repressivo é aquela cuja a sua ruptura, ocasionada por qualquer agente constitui o crime. Definindo a acepção crime, como atos universalmente reprovados pelos membros de cada sociedade, Durkheim descobre um elemento que se encontra em todas as consciências individuais. O crime é capaz de gerar sentimentos em todas as consciências, os sentimentos coletivos que correspondem a um crime são medidos pela sua intensidade média.  Isso demonstra o efeito refratário do direito penal, ou das sanções repressivas. O crime é, pois, caracterizado por determinar a pena. E essa pena é uma reação passional da sociedade em punir o seu agente, isso é uma característica própria das sociedades menos cultas, nas quais as sanções repressivas são mais comuns. Através da natureza dos sentimentos coletivos que a pena é explicada.
 Nas sociedades mecânicas a consciência coletiva exerce poder de coerção sobre os indivíduos. Nessas sociedades os indivíduos se identificam, por similitudes, crenças e sentimentos em comum, que ligam o indivíduo a sociedade. É essa solidariedade mecânica que o direito penal exprime. Ela é o produto das similitudes sociais, e tem por efeito manter a coesão social que resulta dessas similitudes. Do mesmo modo é o objetivo da pena, que é manter a consciência comum, concentrando e aproximando as consciência honestas.
Já as sanções restitutivas constituem outro tipo de solidariedade. Elas exprimem uma solidariedade que Durkheim chamou de orgânicas. Que diferente das penais que são expiatórias, elas são de restauração. Elas se distanciam da consciência comum, base vital da solidariedade mecânica, e quanto mais se distancia dessa consciência comum, mais precisa se especializar, mais precisa de instituições especializadas para se manter na sociedade.
Por ser estranho a consciência comum esse direito, o qual representa as sanções restitutivas, não afeta imediatamente a sociedade. Ele se estabelece entre litigantes sem a mediação social afirmando que a regra é coisa social e que age no sentido de se restabelecer através do litígio. Uma norma fora perturbada e deve ser restabelecida. A ação social não apenas cria a norma ou a regra, mas é da sociedade que vem sua legitimidade. Por trás de todo e qualquer contrato está a sociedade a reconhecer a validade do mesmo.
Por fim, as relações do direito restitutivo se manifestam sob duas formas: negativas as quais se reduzem a pura abstenção. E Positivas que redundam em cooperação. A elas correspondem duas espécies distintas de solidariedade social. As relações negativas expressas juridicamente sob o nome de direitos reais ligam as coisas às pessoas. “Ela não faz com que as vontades se movam em direção a fins comuns, mas apenas que as coisas gravitem com ordem em torno das vontades” (DURKHEIM, 2010, p. 91).
O direito típico do conjunto dos reais é o direito a propriedade e suas variações, direito esse que por ser a base da organização social estabelecida é tido como dogma, e, portanto não carece de consenso. Como não há consenso não existe lugar, também, para o dissenso, esses direitos isolam os indivíduos, vedam o concurso entre eles em função de sua função social que é resguardar as relações conservadoras entre as coisas e as pessoas.
As relações pessoa/pessoa do tipo negativo nada mais são do que outro tipo de relação coisa/pessoa. Pois só ocorrem quando o isolamento entre os indivíduos relacionados a coisas se rompe. Nesse momento as pessoas entram em cena para restaurar as relações coisa/pessoa. O concurso que há é aparente, pois é ocasionado com o fim de se restabelecer a abstenção.

A solidariedade negativa não é um tipo real de solidariedade, mas sim o lado negativo da solidariedade. Desse modo só pode existir em sociedades onde exista sua contra parte a solidariedade positiva. Ambas tem por função o bom funcionamento do organismo social. A primeira é uma espécie de acordo externa que supõe a coesão orgânica, enquanto a segunda é a resultante e a condição dessa coesão. 

A solidariedade de tipo positivo, típica do direito cooperativo, é a que promove e surge do concurso entre os indivíduos, manifesta-se no direito que se ocupa da divisão social do trabalho em qualquer que sejam os seus graus e formas, temos como exemplo: os direitos doméstico, contratual, comercial, processual, administrativo e constitucional.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

O leviatã, com Clóvis de Barros Filho





este vídeo o professor da USP Clóvis de Barros interpreta o estado de natureza e a transição para o estado civil tal como pintado no Leviatã, do grande Thomas Hobbes.
O estado de natureza, nos diz Hobbes, é a condição em que nos encontramos sem os freios criados a partir do advento do governo, que, ainda segundo Hobbes, deve ser soberano e absoluto afim de impedir que nos mantenhamos em guerra constante de todos contra todos. De modo que no estado de natureza, sem impedimentos, aquilo que me mantém distante do objeto do meu desejo é meramente a força que eu possa empenhar para pegar aquilo que quero. No estado de natureza de Hobbes, se eu quero e tenho força suficiente para conseguir, então eu terei.
"No estado de natureza 'é nois'. Não tem limite. O limite é a força. O limite é o desejo. O limite é a saciedade. Portanto o binômio desejo e força, são o binômio do limite da vida no estado de natureza."



VTS 01 1 Maria do Paraguaçu Parte 1





Documentário mostra a trajetória de luta da comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu através da liderança de Dona Maria das Dores de Jesus, Maria do Paraguaçu. Filme dirigido por Camila Dutervil.

Hipácia - Uma das grandes pensadoras da Antiguidade.

"Cirilo, patriarca de Alexandria de 412 até 444, foi um dos responsáveis pelo assassinato brutal de Hipácia, uma das poucas mulheres citadas nos anais de história da matemática. Cirilo também foi canonizado, virou SANTO, mas poucos são aqueles que conhecem a História dessa grande pensadora da Antiguidade!"




Numa tarde de março do ano 415, durante a quaresma, uma mulher de 60 anos é tirada de sua carruagem por uma multidão enfurecida e arrastada até a igreja de Cesarión, antigo templo de culto ao imperador romano César, em Alexandria, no Egito. Lá é despida e tem sua pele e carne arrancadas com ostras (ou fragmentos de cerâmica ou azulejo, segundo outra versão). Acusada de bruxaria, é destroçada viva pela turba desgovernada. Já morta, arrancam seus braços e pernas. O restante do cadáver é queimado em uma pira nos arredores da cidade. Era o fim da trajetória impressionante da primeira mulher matemática da História e uma das principais filósofas da Antiguidade: Hipácia.
A intelectual, professora carismática que inspirou alguns dos grandes cérebros de seu tempo, tinha influência em diversas esferas da vida pública. O prefeito da cidade, Orestes, indicado por Roma, a consultava antes de muitas de suas decisões. Por isso mesmo, ela tornou-se um obstáculo para a sede de poder de Cirilo, bispo de Alexandria, inimigo político do também cristão Orestes e, possivelmente, o mentor do assassinato da filósofa. Quem foi essa mulher, capaz de se destacar num mundo em que o intelecto era propriedade masculina? Há controvérsia sobre o ano de seu nascimento: 355 é o mais aceito. Fala-se também em 370. Nesse caso, ela teria apenas 45 anos ao ser linchada. Foi criada pelo pai, Teón – grande matemático, astrônomo e diretor do Museu de Alexandria -, nesse ambiente de estudo e pesquisa. Ela superou o mestre na ciência dos números e ainda tornou-se uma expoente do pensamento filosófico neoplatônico. É considerada a última intelectual de destaque da capital egípcia, centro da cultura grega no mundo helenístico.
“Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos”, diz o historiador Sócrates, o Escolástico, na História Eclesiástica, escrita no século 5.
Mulher de enorme beleza, adotou o ascetismo como norma de vida: vestia-se apenas com o manto dos filósofos, uma espécie de túnica branca. Não acumulava riquezas e foi celibatária até o fim da vida. Um episódio ilustra sua rigidez moral: um aluno (eram todos homens), apaixonado, insiste em cortejá-la. Hipácia, então, mostra a ele um de seus panos higiênicos (usados na menstruação): “É isto que tu amas na verdade e não a beleza por si mesma”.
Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época tendo progredido na escola de plantão e plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos.
Sócrates, o escolástico, século 5
Hipácia foi a principal representante do neoplatonismo de seu tempo. Dedicava-se a pensar o mundo das ideias em relação ao mundo físico, a investigar se a alma era una ou dividida, a partir de questões metafísicas levantadas pelo filósofo Plotino (205-270). Ensinava em cursos fechados, mas fazia também conferências abertas que atraíam homens poderosos, como Orestes, e visitantes de Roma, Atenas e outras cidades. “Orestes se tornou amigo e confidente de Hipácia. Encontravam-se frequentemente, discutindo não só suas palestras mas também assuntos municipais e políticos. Isso a colocou claramente ao lado dele na luta contra Cirilo. Ela deve ter parecido uma grande ameaça para Cirilo, pois seus discípulos tinham altos cargos, tanto em Alexandria como fora”, diz o matemático americano Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides.
A cidade fundada por Alexandre e sua magnífica biblioteca
Alexandria começou a ser construída em 332 a.C., por Alexandre, o Grande, e em poucos anos se tornou um polo de matemática, filosofia e ciência gregas. Meio século mais tarde, Ptolomeu II ergueu uma enorme biblioteca e um museu – que funcionou como centro de pesquisa. A biblioteca se desenvolveu de forma pouco ortodoxa. “Ptolomeu II, querendo a primeira tradução grega do Antigo Testamento, ‘comissionou’ o trabalho prendendo 70 doutos judeus em celas na ilha de Faros. Ptolomeu III escreveu a todos os soberanos do mundo pedindo emprestados seus livros, e depois ficou com eles”, diz Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides. A biblioteca reuniu entre 200 mil e 500 mil papiros e, com o museu, transformou a cidade no maior núcleo intelectual da época. O acervo se perdeu aos poucos. Primeiro, sob ataque das tropas de Júlio César, em 48 a.C. No período cristão foram sucessivos golpes e incêndios. Até que, em 640, a ocupação do califa Omar destruiu praticamente toda a coleção.
Política x religião
Nascida numa cidade em que diversas religiões conviviam, ela era pagã. Pouco ia ao templo. Tinha entre seus pupilos muitos alunos cristãos, como Sinésio de Cirene, futuro bispo de Ptolemaida. Suas cartas para Hipácia e outros discípulos são o principal registro sobre ela, a quem adorava. A religião nunca foi um empecilho entre eles.
“No momento em que vive Hipácia, temos uma sociedade em tensão por causa das mudanças político-religiosas. Há vários relatos sobre hostilidades entre judeus e cristãos e cristãos e pagãos. A relativa tolerância religiosa de outrora foi inteiramente abalada pelo radicalismo. Seitas foram expulsas de Alexandria e, cada vez mais, a população era insuflada contra elementos de destaque que poderiam ser considerados uma ameaça à expansão de poder do cristianismo”, afirma a professora de Letras Clássicas Fernanda Lemos de Lima, da Uerj, coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria.
É nesse contexto que Cirilo resolve investir contra a filósofa. Em 413, o bispo já havia expulsado os novacianos e os judeus de Alexandria. Pouco depois, monges atiçados por ele atacaram Orestes, com quem travava uma violenta disputa por poder e influência nos rumos da capital do Egito. Convencido de que Hipácia representava a grande força por trás do prefeito, Cirilo instigou seus seguidores a espalharem pela cidade o boato de que a filósofa era uma bruxa, que usava magia negra para controlar Orestes. A calúnia visava exatamente apavorar a população, diz a historiadora Maria Dzielska em Hipatia de Alejandría (sem edição no Brasil): “Em seu círculo não se utilizam métodos mágicos para entender a natureza do mundo; não há menção de que se ofereçam sacrifícios aos deuses, nem de que se utilizem objetos de culto, nem cerimônias noturnas, nem estátuas que se animam, nem nada disso”. Mas a mentira prosperou. No século 7, o bispo cristão João de Nikiu registra em suas Crônicas: “E naqueles dias havia em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipácia, e ela era devota a todas as sortes de magia, astrolábios e instrumentos musicais, e ela iludiu muita gente através de truques satânicos. E o governante da cidade a respeitava muitíssimo; pois ela o havia iludido através de sua magia”.
Muito antes das fogueiras da Inquisição, a perseguição às mulheres associadas à feitiçaria era comum. Em 430 a.C., em Atenas, Eurípides caracteriza Medeia como uma forasteira adepta da magia. “Já havia um modelo de feiticeira na literatura grega arcaica, como na Odisseia, de Homero, com Circe, Calipso e Helena”, diz a historiadora Maria Regina Cândido, autora de A Feitiçaria na Atenas Clássica. Em busca de alívio para problemas como cólicas e as dores do parto, as mulheres aprenderam a usar ervas medicinais. “Elas eram solicitadas para realizar a ‘magia amorosa’ através de chás e misturas. Mas, em excesso, as poções podiam causar a morte ou a impotência masculina. As questões iam parar nos tribunais sob acusação de prática de feitiçaria, e a sentença era a morte”, afirma a historiadora.
A boataria avançou entre as camadas mais simples da população. Até que, liderada por um homem conhecido como Pedro, o Leitor, uma turba decidiu linchá-la. Para Dzielska, não há dúvida de que foi um assassinato político, já que a autoridade e conexões da matemática “proporcionavam apoio ao representante da autoridade estatal em Alexandria, em detrimento de Cirilo”. A morte da última grande filósofa da Antiguidade clássica deixou toda uma tradição lógica na penumbra durante séculos, até ser redescoberta pelo Renascimento.
(…) ela era devota a todas as sortes de magia (…) e ela iludiu muita gente através de truques satânicos.
João de Nikiu, século 7
Não se sabe nada de Orestes depois da morte de sua mestra. Provavelmente fugiu, deixando a cidade à mercê de Cirilo, que fechou templos e proibiu a prática de qualquer religião ou seita fora do cristianismo tradicional. Ficou à frente da igreja local por mais 20 anos e hoje, canonizado, é conhecido como São Cirilo de Alexandria.
Recentemente, a saga de Hipácia foi resgatada em Agora, de Alejandro Amenabar. O filme, estrelado por Rachel Weisz, foi lançado no último festival de Cannes. Mas a maior parte do trabalho da intelectual se perdeu. Sabe-se que ela escreveu comentários sobre duas importantes obras gregas: a Aritmética, de Diofanto, e as Seções Cônicas, de Apolônio. Comentou ainda o Cânon Astronômico, já que dominava também a astronomia. Acreditava-se que tudo isso havia se perdido num dos incêndios da biblioteca de Alexandria e na determinação de Cirilo em banir a influência da filósofa. Hoje, pesquisadores analisam se parte dos comentários de Teón ao Cânon não seria, de fato, de sua filha. Mais: apenas seis dos 13 livros da Aritmética de Diofanto sobreviveram, e poderiam todos ter origem nos textos de Hipácia. Sabe-se ainda que ela era capaz de construir um astrolábio e um hidrômetro. Da obra filosófica, nada restou escrito por ela. Muito do que discutia com os pupilos era mantido em segredo, por princípio. O que se conhece vem das cartas de Sinésio, ele próprio bispo cristão, mas capaz de referir-se a uma pagã como “minha mãe, minha irmã, mestre e benfeitora minha!”
A evolução do papel feminino a partir das culturas grega e egípcia
Para compreender o espaço do feminino na Alexandria do Egito, é interessante tomar como parâmetro de comparação duas culturas anteriores: a egípcia e a grega, bases do mundo alexandrino.
Na esfera privada do Egito faraônico, a mulher apresenta uma relativa liberdade, traduzida, por exemplo, pela possibilidade de se divorciar e manter parte de seus bens. Já na esfera pública, aparece como sacerdotisa, destacando-se em uma série de cultos reais e, em alguns momentos, como regente que usa as vestes de faraó, como Hatshepsut. Se avançarmos até o Egito ptolomaico, em que os governantes de origem macedônica adotaram os títulos dos faraós anteriores, Arsinoé II e Cleópatra VII também figuram como mulheres poderosas.
Mesmo com o advento da democracia na Atenas do século 5, a mulher, juridicamente, não gozava os direitos de “cidadã”, e não teria, em geral, acesso à educação. Havia, é fato, um espaço de relevo em cerimônias religiosas. Todavia, em termos de ocupação do espaço público, as mulheres abastadas não dispunham de liberdade de circulação, realidade que se mostrava distinta no que diz respeito às classes mais pobres, em que as mesmas precisavam frequentar as ruas para garantir o sustento da família.
Em geral, sabe-se que a mulher, no período helenístico (324- 31 a.C.) e, especialmente, no Egito, apresenta-se de maneira diferente em relação à da Atenas clássica: mais educada, com mais visibilidade, liberdade de trânsito e, no âmbito da realeza alexandrina, com acesso ao poder, auxiliando seus maridos na administração do estado. A condição feminina elevou-se em todo o mundo helenístico. Isso fica evidente na literatura e em outras fontes primárias, como contratos de casamento. Na literatura, há personagens femininas transitando pela cidade em dia de festa (como em As Siracusanas, de Teócrito) ou transformadas em deusas, como Berenice II (esposa de Ptolomeu III), que Calímaco de Cirene, em um epigrama, inclui no grupo central de divindades femininas.
No período de dominação romana do Egito – após a vitória de Augusto sobre Cleópatra e Marco Antônio, que resulta na anexação do Egito aos domínios de Roma (31-30 a.C.) -, a mulher mantém igualmente um status mais elevado que aquele da Atenas clássica, especialmente em termos jurídicos. Há fragmentos de papiros com registros de processos, cartas e negócios que demonstram a busca de mulheres por direitos previstos em lei, como o de autonomia na gestão de seus bens. Um papiro egípcio do século 3 (Oxyrhynchus papyrus 1467. G) chama atenção pelo fato de uma mãe de três filhos pleitear o direito de exercer as funções de kyrios (senhor da casa). O argumento da peticionária era o fato de ser uma mulher educada, capaz de gerir seus negócios. A ideia de haver uma lei que favorecesse mulheres letradas chama atenção sobre o acesso que o sexo feminino tinha ao conhecimento no período de dominação romana. Interessante observar nesses papiros como mulheres romanas, gregas e egípcias são apresentadas como senhoras de bens consideráveis, situação bem diferente da vivida pela mulher da Atenas clássica, mas não tão diferente da experienciada pelas egípcias do período faraônico.
No âmbito da literatura do período imperial romano, o romance grego, que se desenvolve a partir do século 1 a.C., apresenta uma simetria entre protagonistas femininos e masculinos. Além disso, as personagens femininas desempenham papéis de destaque nas diegeses, seja como as protagonistas que, perto ou longe de seus pares amorosos, vencem os inúmeros desafios através de atitudes inteligentes e de boa argumentação, seja como “vilãs” astuciosas.
A figura da mulher-filósofa – única mulher a dirigir o Museu de Alexandria – merece ser lembrada não para falar de uma regra de liberdade feminina na sociedade alexandrina antes do período bizantino, mas sim para fazer com que se possa refletir como houve um crescimento considerável do campo de atuação do feminino nesse mundo pagão alexandrino, que encontra seu ocaso simbólico no assassinato de Hipácia, sophia da ágora alexandrina.
Fernanda Lemos de Lima, professora de Letras Clássicas na Uerj e coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Belchior - Entrevista na Rádio Nacional (1979)





Para que possamos entender um pouco sobre a grande obra deixada por esse cantor e compositor incomum na história da música popular brasileira.

terça-feira, 25 de abril de 2017

O Ritual do Corpo entre os Sonacirema

[Horace Minner]
O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos com que diferentes povos reagem diante de situações similares, que ele não consegue se surpreender com os costumes mais exóticos possíveis. Com efeito, se quaisquer entre todas as combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas em alguma parte do mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar presentes em alguma tribo ainda não estudada. Esta observação já foi realmente feita pro Neerdeek, no que diz respeito à organização clânica. Neste sentido, as crenças e práticas mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais que nos parece importante descrevê-los como exemplo dos extremos a que o comportamento humano pode chegar.
O Prof. Linton foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos Sonacirema, há vinte anos atrás, mas a cultura deste povo é ainda pouco compreendida. Os Sonacirema são um grupo norte-americano que vive no território que se estende desde os Cree do Canadá, aos Yaqui e Tarahumara do México, e aos Caribe e Aruaque das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do leste.
A cultura Sonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um habitat cultural muito rico. Embora a maior parte do tempo das pessoas, nesta sociedade, seja devotada à ocupação econômica, uma grande porção de frutos destes trabalhos e uma considerável parte do dia são despendidas em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante de ethos deste povo. Embora tal tipo de preocupação não seja realmente pouco comum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícitas são únicas.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar estas características, através do uso de poderosas influências do ritual e de cerimônia. Todo o grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a opulência de uma casa é freqüentemente aferida em termos da quantidade dos centros de rituais que abrigam. A maioria das casas é de taipa, mas os santuários dos mais ricos têm as paredes cobertas de pedra. As famílias mais pobres imitam os ricos, aplicando placas de cerâmica nas paredes dos seus santuários.
Embora cada família possua ao menos um destes santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim privadas e secretas. Os ritos, normalmente, só são discutidos com as crianças, e isto apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nestes mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu examinar este santuário e anotar a descrição destes rituais.
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários profissionais especializados. Dentre estes, os mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para seus clientes, decidindo apenas os ingredientes que nelas devem entrar, escrevendo-os em seguida em uma linguagem antiga e secreta. Tal escrito só pode ser decifrado pelo curandeiro e pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes, fornecem o feitiço desejado.
O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas sim colocado na caixa de mágica do santuário doméstico. Como estes materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágicas costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a esta questão, só podemos concluir que a idéia subjacente ao costume de se guardar todos os velhos materiais mágicos, é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da qual os rituais do corpo são encenados, protegem de alguma forma o fiel.
Embaixo da caixa de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução. As águas sagradas são obtidas do Templo da água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente puro.
Na hierarquia dos profissionais da magia e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão os especialistas, cuja designação é melhor traduzida por “homens-da-boca-sagrada”. Os Sonacirema têm um horror pela boca e uma fascinação por ela que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam, seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca das crianças que se considera como forma de desenvolver sua fibra moral.
O ritual do corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar de sabermos que este povo é tão meticuloso no que diz respeito ao cuidado da boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não-iniciado não consegue deixar de achar repugnante. Conforme foi descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós mágicos, e em seguida na movimentação deste feixe segundo uma série de gestos altamente formalizados.
Além deste rito bucal privado, as pessoas procurar um homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes por ano. Estes profissionais possuem uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase e inacreditável tortura ritual do cliente. O homem-da-boca-sagrada abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nestes buracos. Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serrados, para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do cliente, o objetivo destas aplicações é deter ao apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos retornam todo ano ao homem-da-boca-sagrada, embora seus dentes continuem a se deteriorar.
Deve-se esperar que quando um estudo intensivo dos Sonacirema for feito, seja realizada uma pesquisa cuidadosa sobre a estrutura de personalidade destes nativos. Basta observar o brilho nos olhos de um homem-da-boca-sagrada quando ele enfia uma agulha em um nervo exposto, para que se suspeite de que uma certa dose de sadismo está presente. Se isto puder ser verificado, uma configuração muito interessante emergirá, posto que a maioria da população mostra tendências masoquistas bem definidas. Era a tais tendências que o Professor Linton se referia, ao discutir uma parte especial do ritual cotidiano do corpo, que é apenas realizada pelos homens. Esta parte do rito envolve uma arranhadura e laceração da superfície do rosto por meio de um instrumento cortante. Ritos femininos especiais ocorrem somente quatro vezes por mês lunar, mas o que lhes falta em freqüência, lhes sobra em barbárie. Como parte desta cerimônia, as mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos durante mais ou menos uma hora. O ponto teoricamente interessante é que um povo dominantemente masoquista desenvolve especialistas sádicos.
Os curandeiros possuem um templo imponente, o latipsoh, em cada comunidade de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa e um penteado distintivos.
As cerimônias latipsoh são tão violentas que chega a ser fenomenal o fato que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de leva-las ao templo, alegando que “é aonde você vai para morrer”. Apesar disto, os doentes adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se à prolongada purificação ritual, se eles possuem meios para tanto. Os guardiões de muitos templos, não importa quão doente o suplicante ou quão grave a emergência, não admitem o cliente se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.
O(a) suplicante, ao entrar no templo, é primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Sonacirema evitam a exposição de seus corpos quando das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. A súbita perda da privacidade corporal, ao se entrar no latipsoh, costuma causar um choque psicológico. Um homem, cuja própria mulher jamais viu quando ele realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma vestal, enquanto executa assim suas funções naturais dentro de um vaso sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas por um adivinho para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente. Os clientes femininos, por seu lado, vêm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitados nas camas duras. As cerimônias, como os já citados ritos do homem-da-boca-sagrada, implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis pacientes, rolam-nos em seus leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem varas mágicas na boca do paciente, ou obrigam-no a comer substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm até seus pacientes e atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros.
Ainda resta um outro tipo de especialista, conhecido como um “escutador”. Este feiticeiro tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Sonacirema acreditam que os pais fazem feitiçaria entre sues próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma maldição na criança, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contra-magia do feiticeiro “escutador” é singular por sua relativa ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao “escutador” todos os seus problemas e medos, começando com as primeiras dificuldades de que pode se lembrar. A memória exibida pelos Sonacirema nestas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu ao ser desmamado, e alguns indivíduos chegam a localizar seus problemas nos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento.
Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos ainda são usados para fazer os seios das mulheres maiores, se eles são pequenos, e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seios é simbolizada pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem viver muito bem através de simples viagens à aldeia, permitindo aos nativos admirá-los mediante uma taxa.
Já fizemos referências ao fato de que as funções excretórias são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao domínio do secreto. As funções reprodutivas naturais são igualmente distorcidas. O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, e programado e planejado enquanto ato. Grandes esforços são feitos para evitar a gravidez por meio de uso de materiais mágicos, ou pela limitação do intercurso em certas fases da lua. A concepção é realmente muito pouco freqüente. Quando grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto se realiza em segredo, sem amigos ou parentes assistindo, e a maioria das mulheres não amamenta nem cuida dos seus bebês.
Nossa descrição da vida ritual dos Sonacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos pesados fardos que eles mesmos se impuseram. Mas, mesmo os costumes tão exóticos quanto estes, ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski, quem escreveu:
“Olhando de cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas sem este poder e este guia, o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como fez, nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios da civilização.”

[NE) Tradução atribuída a  Eduardo B. Viveiros de Castro, versão original em inglês disponível em  http://www.ohio.edu/people/thompsoc/Body.html