segunda-feira, 5 de junho de 2017

Hipácia - Uma das grandes pensadoras da Antiguidade.

"Cirilo, patriarca de Alexandria de 412 até 444, foi um dos responsáveis pelo assassinato brutal de Hipácia, uma das poucas mulheres citadas nos anais de história da matemática. Cirilo também foi canonizado, virou SANTO, mas poucos são aqueles que conhecem a História dessa grande pensadora da Antiguidade!"




Numa tarde de março do ano 415, durante a quaresma, uma mulher de 60 anos é tirada de sua carruagem por uma multidão enfurecida e arrastada até a igreja de Cesarión, antigo templo de culto ao imperador romano César, em Alexandria, no Egito. Lá é despida e tem sua pele e carne arrancadas com ostras (ou fragmentos de cerâmica ou azulejo, segundo outra versão). Acusada de bruxaria, é destroçada viva pela turba desgovernada. Já morta, arrancam seus braços e pernas. O restante do cadáver é queimado em uma pira nos arredores da cidade. Era o fim da trajetória impressionante da primeira mulher matemática da História e uma das principais filósofas da Antiguidade: Hipácia.
A intelectual, professora carismática que inspirou alguns dos grandes cérebros de seu tempo, tinha influência em diversas esferas da vida pública. O prefeito da cidade, Orestes, indicado por Roma, a consultava antes de muitas de suas decisões. Por isso mesmo, ela tornou-se um obstáculo para a sede de poder de Cirilo, bispo de Alexandria, inimigo político do também cristão Orestes e, possivelmente, o mentor do assassinato da filósofa. Quem foi essa mulher, capaz de se destacar num mundo em que o intelecto era propriedade masculina? Há controvérsia sobre o ano de seu nascimento: 355 é o mais aceito. Fala-se também em 370. Nesse caso, ela teria apenas 45 anos ao ser linchada. Foi criada pelo pai, Teón – grande matemático, astrônomo e diretor do Museu de Alexandria -, nesse ambiente de estudo e pesquisa. Ela superou o mestre na ciência dos números e ainda tornou-se uma expoente do pensamento filosófico neoplatônico. É considerada a última intelectual de destaque da capital egípcia, centro da cultura grega no mundo helenístico.
“Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos”, diz o historiador Sócrates, o Escolástico, na História Eclesiástica, escrita no século 5.
Mulher de enorme beleza, adotou o ascetismo como norma de vida: vestia-se apenas com o manto dos filósofos, uma espécie de túnica branca. Não acumulava riquezas e foi celibatária até o fim da vida. Um episódio ilustra sua rigidez moral: um aluno (eram todos homens), apaixonado, insiste em cortejá-la. Hipácia, então, mostra a ele um de seus panos higiênicos (usados na menstruação): “É isto que tu amas na verdade e não a beleza por si mesma”.
Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época tendo progredido na escola de plantão e plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos.
Sócrates, o escolástico, século 5
Hipácia foi a principal representante do neoplatonismo de seu tempo. Dedicava-se a pensar o mundo das ideias em relação ao mundo físico, a investigar se a alma era una ou dividida, a partir de questões metafísicas levantadas pelo filósofo Plotino (205-270). Ensinava em cursos fechados, mas fazia também conferências abertas que atraíam homens poderosos, como Orestes, e visitantes de Roma, Atenas e outras cidades. “Orestes se tornou amigo e confidente de Hipácia. Encontravam-se frequentemente, discutindo não só suas palestras mas também assuntos municipais e políticos. Isso a colocou claramente ao lado dele na luta contra Cirilo. Ela deve ter parecido uma grande ameaça para Cirilo, pois seus discípulos tinham altos cargos, tanto em Alexandria como fora”, diz o matemático americano Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides.
A cidade fundada por Alexandre e sua magnífica biblioteca
Alexandria começou a ser construída em 332 a.C., por Alexandre, o Grande, e em poucos anos se tornou um polo de matemática, filosofia e ciência gregas. Meio século mais tarde, Ptolomeu II ergueu uma enorme biblioteca e um museu – que funcionou como centro de pesquisa. A biblioteca se desenvolveu de forma pouco ortodoxa. “Ptolomeu II, querendo a primeira tradução grega do Antigo Testamento, ‘comissionou’ o trabalho prendendo 70 doutos judeus em celas na ilha de Faros. Ptolomeu III escreveu a todos os soberanos do mundo pedindo emprestados seus livros, e depois ficou com eles”, diz Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides. A biblioteca reuniu entre 200 mil e 500 mil papiros e, com o museu, transformou a cidade no maior núcleo intelectual da época. O acervo se perdeu aos poucos. Primeiro, sob ataque das tropas de Júlio César, em 48 a.C. No período cristão foram sucessivos golpes e incêndios. Até que, em 640, a ocupação do califa Omar destruiu praticamente toda a coleção.
Política x religião
Nascida numa cidade em que diversas religiões conviviam, ela era pagã. Pouco ia ao templo. Tinha entre seus pupilos muitos alunos cristãos, como Sinésio de Cirene, futuro bispo de Ptolemaida. Suas cartas para Hipácia e outros discípulos são o principal registro sobre ela, a quem adorava. A religião nunca foi um empecilho entre eles.
“No momento em que vive Hipácia, temos uma sociedade em tensão por causa das mudanças político-religiosas. Há vários relatos sobre hostilidades entre judeus e cristãos e cristãos e pagãos. A relativa tolerância religiosa de outrora foi inteiramente abalada pelo radicalismo. Seitas foram expulsas de Alexandria e, cada vez mais, a população era insuflada contra elementos de destaque que poderiam ser considerados uma ameaça à expansão de poder do cristianismo”, afirma a professora de Letras Clássicas Fernanda Lemos de Lima, da Uerj, coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria.
É nesse contexto que Cirilo resolve investir contra a filósofa. Em 413, o bispo já havia expulsado os novacianos e os judeus de Alexandria. Pouco depois, monges atiçados por ele atacaram Orestes, com quem travava uma violenta disputa por poder e influência nos rumos da capital do Egito. Convencido de que Hipácia representava a grande força por trás do prefeito, Cirilo instigou seus seguidores a espalharem pela cidade o boato de que a filósofa era uma bruxa, que usava magia negra para controlar Orestes. A calúnia visava exatamente apavorar a população, diz a historiadora Maria Dzielska em Hipatia de Alejandría (sem edição no Brasil): “Em seu círculo não se utilizam métodos mágicos para entender a natureza do mundo; não há menção de que se ofereçam sacrifícios aos deuses, nem de que se utilizem objetos de culto, nem cerimônias noturnas, nem estátuas que se animam, nem nada disso”. Mas a mentira prosperou. No século 7, o bispo cristão João de Nikiu registra em suas Crônicas: “E naqueles dias havia em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipácia, e ela era devota a todas as sortes de magia, astrolábios e instrumentos musicais, e ela iludiu muita gente através de truques satânicos. E o governante da cidade a respeitava muitíssimo; pois ela o havia iludido através de sua magia”.
Muito antes das fogueiras da Inquisição, a perseguição às mulheres associadas à feitiçaria era comum. Em 430 a.C., em Atenas, Eurípides caracteriza Medeia como uma forasteira adepta da magia. “Já havia um modelo de feiticeira na literatura grega arcaica, como na Odisseia, de Homero, com Circe, Calipso e Helena”, diz a historiadora Maria Regina Cândido, autora de A Feitiçaria na Atenas Clássica. Em busca de alívio para problemas como cólicas e as dores do parto, as mulheres aprenderam a usar ervas medicinais. “Elas eram solicitadas para realizar a ‘magia amorosa’ através de chás e misturas. Mas, em excesso, as poções podiam causar a morte ou a impotência masculina. As questões iam parar nos tribunais sob acusação de prática de feitiçaria, e a sentença era a morte”, afirma a historiadora.
A boataria avançou entre as camadas mais simples da população. Até que, liderada por um homem conhecido como Pedro, o Leitor, uma turba decidiu linchá-la. Para Dzielska, não há dúvida de que foi um assassinato político, já que a autoridade e conexões da matemática “proporcionavam apoio ao representante da autoridade estatal em Alexandria, em detrimento de Cirilo”. A morte da última grande filósofa da Antiguidade clássica deixou toda uma tradição lógica na penumbra durante séculos, até ser redescoberta pelo Renascimento.
(…) ela era devota a todas as sortes de magia (…) e ela iludiu muita gente através de truques satânicos.
João de Nikiu, século 7
Não se sabe nada de Orestes depois da morte de sua mestra. Provavelmente fugiu, deixando a cidade à mercê de Cirilo, que fechou templos e proibiu a prática de qualquer religião ou seita fora do cristianismo tradicional. Ficou à frente da igreja local por mais 20 anos e hoje, canonizado, é conhecido como São Cirilo de Alexandria.
Recentemente, a saga de Hipácia foi resgatada em Agora, de Alejandro Amenabar. O filme, estrelado por Rachel Weisz, foi lançado no último festival de Cannes. Mas a maior parte do trabalho da intelectual se perdeu. Sabe-se que ela escreveu comentários sobre duas importantes obras gregas: a Aritmética, de Diofanto, e as Seções Cônicas, de Apolônio. Comentou ainda o Cânon Astronômico, já que dominava também a astronomia. Acreditava-se que tudo isso havia se perdido num dos incêndios da biblioteca de Alexandria e na determinação de Cirilo em banir a influência da filósofa. Hoje, pesquisadores analisam se parte dos comentários de Teón ao Cânon não seria, de fato, de sua filha. Mais: apenas seis dos 13 livros da Aritmética de Diofanto sobreviveram, e poderiam todos ter origem nos textos de Hipácia. Sabe-se ainda que ela era capaz de construir um astrolábio e um hidrômetro. Da obra filosófica, nada restou escrito por ela. Muito do que discutia com os pupilos era mantido em segredo, por princípio. O que se conhece vem das cartas de Sinésio, ele próprio bispo cristão, mas capaz de referir-se a uma pagã como “minha mãe, minha irmã, mestre e benfeitora minha!”
A evolução do papel feminino a partir das culturas grega e egípcia
Para compreender o espaço do feminino na Alexandria do Egito, é interessante tomar como parâmetro de comparação duas culturas anteriores: a egípcia e a grega, bases do mundo alexandrino.
Na esfera privada do Egito faraônico, a mulher apresenta uma relativa liberdade, traduzida, por exemplo, pela possibilidade de se divorciar e manter parte de seus bens. Já na esfera pública, aparece como sacerdotisa, destacando-se em uma série de cultos reais e, em alguns momentos, como regente que usa as vestes de faraó, como Hatshepsut. Se avançarmos até o Egito ptolomaico, em que os governantes de origem macedônica adotaram os títulos dos faraós anteriores, Arsinoé II e Cleópatra VII também figuram como mulheres poderosas.
Mesmo com o advento da democracia na Atenas do século 5, a mulher, juridicamente, não gozava os direitos de “cidadã”, e não teria, em geral, acesso à educação. Havia, é fato, um espaço de relevo em cerimônias religiosas. Todavia, em termos de ocupação do espaço público, as mulheres abastadas não dispunham de liberdade de circulação, realidade que se mostrava distinta no que diz respeito às classes mais pobres, em que as mesmas precisavam frequentar as ruas para garantir o sustento da família.
Em geral, sabe-se que a mulher, no período helenístico (324- 31 a.C.) e, especialmente, no Egito, apresenta-se de maneira diferente em relação à da Atenas clássica: mais educada, com mais visibilidade, liberdade de trânsito e, no âmbito da realeza alexandrina, com acesso ao poder, auxiliando seus maridos na administração do estado. A condição feminina elevou-se em todo o mundo helenístico. Isso fica evidente na literatura e em outras fontes primárias, como contratos de casamento. Na literatura, há personagens femininas transitando pela cidade em dia de festa (como em As Siracusanas, de Teócrito) ou transformadas em deusas, como Berenice II (esposa de Ptolomeu III), que Calímaco de Cirene, em um epigrama, inclui no grupo central de divindades femininas.
No período de dominação romana do Egito – após a vitória de Augusto sobre Cleópatra e Marco Antônio, que resulta na anexação do Egito aos domínios de Roma (31-30 a.C.) -, a mulher mantém igualmente um status mais elevado que aquele da Atenas clássica, especialmente em termos jurídicos. Há fragmentos de papiros com registros de processos, cartas e negócios que demonstram a busca de mulheres por direitos previstos em lei, como o de autonomia na gestão de seus bens. Um papiro egípcio do século 3 (Oxyrhynchus papyrus 1467. G) chama atenção pelo fato de uma mãe de três filhos pleitear o direito de exercer as funções de kyrios (senhor da casa). O argumento da peticionária era o fato de ser uma mulher educada, capaz de gerir seus negócios. A ideia de haver uma lei que favorecesse mulheres letradas chama atenção sobre o acesso que o sexo feminino tinha ao conhecimento no período de dominação romana. Interessante observar nesses papiros como mulheres romanas, gregas e egípcias são apresentadas como senhoras de bens consideráveis, situação bem diferente da vivida pela mulher da Atenas clássica, mas não tão diferente da experienciada pelas egípcias do período faraônico.
No âmbito da literatura do período imperial romano, o romance grego, que se desenvolve a partir do século 1 a.C., apresenta uma simetria entre protagonistas femininos e masculinos. Além disso, as personagens femininas desempenham papéis de destaque nas diegeses, seja como as protagonistas que, perto ou longe de seus pares amorosos, vencem os inúmeros desafios através de atitudes inteligentes e de boa argumentação, seja como “vilãs” astuciosas.
A figura da mulher-filósofa – única mulher a dirigir o Museu de Alexandria – merece ser lembrada não para falar de uma regra de liberdade feminina na sociedade alexandrina antes do período bizantino, mas sim para fazer com que se possa refletir como houve um crescimento considerável do campo de atuação do feminino nesse mundo pagão alexandrino, que encontra seu ocaso simbólico no assassinato de Hipácia, sophia da ágora alexandrina.
Fernanda Lemos de Lima, professora de Letras Clássicas na Uerj e coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria

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